Mas deve um Comandante também ser flexível... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 96
Sim, ainda era tempo, havia uma casa à beira da praia, de verdes
janelas abertas sobre o mar, onde faltava a dona da casa, havia um solitário,
com toda uma vida a viver, um passado a distribuir sem ter quem nessa tarefa o
ajudasse, sem um braço onde apoiar-se quando mais adiante o caminho se fizesse
estreito.
Por quanto tempo ainda levaria
erguida sua crista, não se deixaria dobrar à tristeza, não se entregaria
prisioneiro nos fechados muros do abandono?
Ah! se ela qui sesse transferir seu nobre porte, suas músicas,
seu piano, sua madura e ansiada graça, os bandos do cabelo e o riso sincopado,
para o subúrbio de Periperi, se aceitasse plantar no desiludido coração magoado
o broto de
um novo amor, ah! seria ainda tempo de romper os muros da crescente solidão e
florir os jardins de seu porto de descanso no fim da última e definitiva
viagem.
Não seria tão grande assim a diferença de
idade, calculava andasse Clotilde pelos quarenta e cinco...
Só agora sentia, ao encontrá-la, como
fora inteira de solidão a sua vida, uma longa espera.
Um abafado rumor, como um gemido, desfalecente
ai, trouxe-lhe a brisa, vinha do outro lado, da sombra do barco de salvamento.
O comandante sempre a postos, vigilante, apurou o ouvido habituado ao silêncio
e à voz do mar, aproximou-se em passo mesurado.
Foi-lhe dado ver então, na sombra do
barco de salvamento, a franzina artista e o pudico senador, ela estendida e com
o vestido suspenso, ele. sem paletó, descomposto, suspirando naquela
bem-aventurada brincadeira.
Afastou-se o comandante a pensar. Para
fazer justiça, agir com inflexível rigor, como o fizera com o profissional de
pôquer, devia arrancá-los um dos braços do outro, exigir do pai da pátria mais
respeito a bordo.
Mas deve um comandante também ser flexível,
evitar o escândalo, a ruína de seu barco. Ao demais, como podia ele, homem de
tantas aventuras, irritar-se com amantes, mesmo se amantes de um momento
apenas, na sagrada hora da festa do amor?
Recordava, de novo debruçado na amurada,
aquele outro comandante Georges Dias Nadreau, da Marinha de Guerra. Quando lhe
vinham queixar-se de um marinheiro, pegado em flagrante com uma cabrocha nos
escuros do porto, ria apenas e declarava:
-
“Vá se queixar ao Bispo, não sou cadeado do xibiu de ninguém”.
E
ele mesmo, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão, não tivera, em certa noite
perdida, em seus braços, no tombadilho de seu próprio navio, o trémulo corpo de
Dorothy, sua febre de amor?
Não sonhava ai!, naquele devaneio, em
tomar das mãos de Clotilde, dos seus cabelos, de murmurar-lhe ao ouvido frases
apaixonadas, de esmagar sua boca à luz daquela estrela perdida, de tocar seu
corpo no chão de seu navio?
Dos adolescentes nas pontes e ruas do
Recife e de imprevista e fugidia visão cagou-lhe mangabas e sapotis na Rua
Nova, ofereceu-lhe amarelos cajás e verdes umbus no cais da Rua da Aurora,
vermelhas pitangas na Rua do Sossego, deu-lhe a beber água de coco na Praia da
Boa Viagem, Clotilde revelava-se gulosa das frutas nordestinas, as mangas e os
cajus, os abacaxis de todo sabor, abius, cajaranas, goiabas, araçás.
Ia num passo saltitante, esquecida da
postura digna, o comandante levava-lhe a sombrinha inútil, eram dois
adolescentes a cruzar as pontes, as praças e as ruas da cidade do Recife. Rindo
sem quê nem por quê, “dois velhos gaiteiros”, na expressão de uma transeunte
apressada, quase ofendida com a disponibilidade juvenil do comandante e da
pianista.
No porto haviam desembarcado pela manhã
os artistas de teatro e o deputado paraibano. Também o Dr. Sténio, a quem a
visão da cidade de Nassau tanto encantara a ponto de levá-lo, segundo anunciou,
a interromper a viagem para demorar-se uns dias a melhor conhecê-la.
Ao pôr o pé na escada, procurou com um
olhar de censura o comandante. Não por causa do desmascaramento de suas
trampolinagens no poker, fora generoso o capitão-de-longo-curso.
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