terça-feira, junho 03, 2014

Mas deve um Comandante também ser flexível...
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 96










Sim, ainda era tempo, havia uma casa à beira da praia, de verdes janelas abertas sobre o mar, onde faltava a dona da casa, havia um solitário, com toda uma vida a viver, um passado a distribuir sem ter quem nessa tarefa o ajudasse, sem um braço onde apoiar-se quando mais adiante o caminho se fizesse estreito.

 Por quanto tempo ainda levaria erguida sua crista, não se deixaria dobrar à tristeza, não se entregaria prisioneiro nos fechados muros do abandono?

 Ah! se ela quisesse transferir seu nobre porte, suas músicas, seu piano, sua madura e ansiada graça, os bandos do cabelo e o riso sincopado, para o subúrbio de Periperi, se aceitasse plantar no desiludido coração magoado o broto de um novo amor, ah! seria ainda tempo de romper os muros da crescente solidão e florir os jardins de seu porto de descanso no fim da última e definitiva viagem.

 Não seria tão grande assim a diferença de idade, calculava andasse Clotilde pelos quarenta e cinco...

Só agora sentia, ao encontrá-la, como fora inteira de solidão a sua vida, uma longa espera.

Um abafado rumor, como um gemido, desfalecente ai, trouxe-lhe a brisa, vinha do outro lado, da sombra do barco de salvamento. O comandante sempre a postos, vigilante, apurou o ouvido habituado ao silêncio e à voz do mar, aproximou-se em passo mesurado.

Foi-lhe dado ver então, na sombra do barco de salvamento, a franzina artista e o pudico senador, ela estendida e com o vestido suspenso, ele. sem paletó, descomposto, suspirando naquela bem-aventurada brincadeira.

Afastou-se o comandante a pensar. Para fazer justiça, agir com inflexível rigor, como o fizera com o profissional de pôquer, devia arrancá-los um dos braços do outro, exigir do pai da pátria mais respeito a bordo.

 Mas deve um comandante também ser flexível, evitar o escândalo, a ruína de seu barco. Ao demais, como podia ele, homem de tantas aventuras, irritar-se com amantes, mesmo se amantes de um momento apenas, na sagrada hora da festa do amor?

Recordava, de novo debruçado na amurada, aquele outro comandante Georges Dias Nadreau, da Marinha de Guerra. Quando lhe vinham queixar-se de um marinheiro, pegado em flagrante com uma cabrocha nos escuros do porto, ria apenas e declarava:

 - “Vá se queixar ao Bispo, não sou cadeado do xibiu de ninguém”.

 E ele mesmo, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão, não tivera, em certa noite perdida, em seus braços, no tombadilho de seu próprio navio, o trémulo corpo de Dorothy, sua febre de amor?

Não sonhava ai!, naquele devaneio, em tomar das mãos de Clotilde, dos seus cabelos, de murmurar-lhe ao ouvido frases apaixonadas, de esmagar sua boca à luz daquela estrela perdida, de tocar seu corpo no chão de seu navio?

Dos adolescentes nas pontes e ruas do Recife e de imprevista e fugidia visão cagou-lhe mangabas e sapotis na Rua Nova, ofereceu-lhe amarelos cajás e verdes umbus no cais da Rua da Aurora, vermelhas pitangas na Rua do Sossego, deu-lhe a beber água de coco na Praia da Boa Viagem, Clotilde revelava-se gulosa das frutas nordestinas, as mangas e os cajus, os abacaxis de todo sabor, abius, cajaranas, goiabas, araçás.

Ia num passo saltitante, esquecida da postura digna, o comandante levava-lhe a sombrinha inútil, eram dois adolescentes a cruzar as pontes, as praças e as ruas da cidade do Recife. Rindo sem quê nem por quê, “dois velhos gaiteiros”, na expressão de uma transeunte apressada, quase ofendida com a disponibilidade juvenil do comandante e da pianista.

No porto haviam desembarcado pela manhã os artistas de teatro e o deputado paraibano. Também o Dr. Sténio, a quem a visão da cidade de Nassau tanto encantara a ponto de levá-lo, segundo anunciou, a interromper a viagem para demorar-se uns dias a melhor conhecê-la.

Ao pôr o pé na escada, procurou com um olhar de censura o comandante. Não por causa do desmascaramento de suas trampolinagens no poker, fora generoso o capitão-de-longo-curso.

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