segunda-feira, junho 02, 2014

E cada vez mais sozinho, mais dobrado ao peso das recordações...
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 95










Que importavam as aventuras, enrabichamentos nos castelos, xodós nas pensões, que importavam as aventuras, as inesperadas paixões nas travessias, as noites de delírio nos portos de bruma e de mistério?

Amor, constante amor a construir um lar e a vida, a desdobrar-se em crianças e a conservar-lhe o nome, afeição de esposa, voz de filho a chamar, pequena cabeça crespa, a acolher-se na fortaleza de seu peito, nunca tivera, faltara-lhe tempo, estava sempre a navegar, no leito dos Barris e dos castelos, a bordo de cargueiros e paquetes. Sempre sozinho, em seu navio, com suas viagens, naufrágios, tempestades, as correntes marítimas, os ventos e os ciclones.

Era agora como um náufrago nessa sua derradeira viagem. Porque, sabia, era sua última viagem, não voltaria ao vacilante chão dos tombadilhos, acompanharia a entrada e saída dos navios do alto dos rochedos de Periperi, a luneta ao olho.

E cada vez mais sozinho, mais dobrado ao peso das recordações, ao fardo daquela vida sua, temerária, sem ter com quem dividi-lo, onde repousar a cabeça, outro ombro além da casmurra cozinheira, como nos tempos do desejo a desabrochar no quarto sem janelas da negra Rosa, no prédio da firma, ao pé da Ladeira da Montanha.

Sim, é bela e invejável a vida de um comandante a comandar o seu navio, como ele o fazia a bordo daquele Ita, tanta gente dependendo dele, tanto destino a cumprir-se em sua mão potente, tanto riso solto e tanta esperança louca, importantes homens políticos, ricos senhores de terra e de indústrias, as pacatas mulheres casadas, de estabelecido quotidiano, e as marcadas mulheres da vida, de fechado horizonte e incerto futuro, jovens apenas começando a viver, clandestinos profissionais do jogo arriscando a liberdade, todos dependendo dele, de suas ordens de comando.

Não tem um comandante o direito sequer de guiar-se por suas simpatias, há o dever a cumprir, inapelável. Foram-lhe sempre simpáticos os jogadores profissionais, que vivem da difícil e arriscada profissão dos baralhos marcados, da batota, dos passes de cartas, da agilidade das mãos e do pensamento.

Privara com vários deles naqueles anos de boémia, tratara com alguns, reconhecera-os generosos e a seu modo leais, sabendo receber a derrota quando um detalhe qualquer transformava o permanente perigo em insultos, pancada, prisão.

Praticara com eles, aprendera-lhes os truques na confiança das noites de farra. Não fosse comandante, em seu barco a comandar, um dever a cumprir, e poderia Sténio limpar os bolsos de todos os fazendeiros, industriais, comerciantes, usineiros, não lhe importaria, sorriria apenas, talvez até pinicasse um olho cúmplice ao competente profissional.

Mas um comandante não é dono de sua vontade, de suas simpatias. Queria seus passageiros protegidos contra os perigos do mar e os imprevistos do mundo.

Tomara-lhe o sofá de porcelana com os róseos namorados de mãos dadas, aquilo não o roubara Sténio, ganhara na sorte, sem trapaça.

Mas de que lhe servira a obra-prima? Certamente igual ao comandante, era ele homem sem lar e sem família, sem porto de pousada, ao leu da vida. Largaria aquela maravilha num quarto de prostíbulo, em mãos da primeira mulher com quem dormisse. E tanto a desejava Clotilde...

Seria tempo ainda? De romper a solidão, de terminar a longa espera? Fizera sessenta anos, tinha branco o cabelo, não era mais senhor daquela força antiga a levantar fardos de charque e bacalhau, barricas de manteiga, a sustentar a roda do leme em meio às tempestades, timoneiro sem rival, mas conservara um vigor surpreendente em sua idade e o coração era o daquele adolescente sem adolescência, íntegro e apto para o grande e definitivo amor de sua vida.

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