E cada vez mais sozinho, mais dobrado ao peso das recordações... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 95
Que importavam as aventuras, enrabichamentos
nos castelos, xodós nas pensões, que importavam as aventuras, as inesperadas
paixões nas travessias, as noites de delírio nos portos de bruma e de mistério?
Amor, constante amor a construir um lar
e a vida, a desdobrar-se em crianças e a conservar-lhe o nome, afeição de
esposa, voz de filho a chamar, pequena cabeça crespa, a acolher-se na fortaleza
de seu peito, nunca tivera, faltara-lhe tempo, estava sempre a navegar, no
leito dos Barris e dos castelos, a bordo de cargueiros e paquetes. Sempre
sozinho, em seu navio, com suas viagens, naufrágios, tempestades, as correntes
marítimas, os ventos e os ciclones.
Era agora como um náufrago nessa sua
derradeira viagem. Porque, sabia, era sua última viagem, não voltaria ao
vacilante chão dos tombadilhos, acompanharia a entrada e saída dos navios do
alto dos rochedos de Periperi, a luneta ao olho.
E cada vez mais sozinho, mais dobrado ao
peso das recordações, ao fardo daquela vida sua, temerária, sem ter com quem
dividi-lo, onde repousar a cabeça, outro ombro além da casmurra cozinheira,
como nos tempos do desejo a desabrochar no quarto sem janelas da negra Rosa, no
prédio da firma, ao pé da Ladeira da Montanha.
Sim, é bela e invejável a vida de um
comandante a comandar o seu navio, como ele o fazia a bordo daquele Ita, tanta
gente dependendo dele, tanto destino a cumprir-se em sua mão potente, tanto
riso solto e tanta esperança louca, importantes homens políticos, ricos
senhores de terra e de indústrias, as pacatas mulheres casadas, de estabelecido
quotidiano, e as marcadas mulheres da vida, de fechado horizonte e incerto
futuro, jovens apenas começando a viver, clandestinos profissionais do jogo
arriscando a liberdade, todos dependendo dele, de suas ordens de comando.
Não tem um comandante o direito sequer
de guiar-se por suas simpatias, há o dever a cumprir, inapelável. Foram-lhe
sempre simpáticos os jogadores profissionais, que vivem da difícil e arriscada
profissão dos baralhos marcados, da batota, dos passes de cartas, da agilidade
das mãos e do pensamento.
Privara com vários deles naqueles anos
de boémia, tratara com alguns, reconhecera-os generosos e a seu modo leais,
sabendo receber a derrota quando um detalhe qualquer transformava o permanente
perigo em insultos, pancada, prisão.
Praticara com eles, aprendera-lhes os
truques na confiança das noites de farra. Não fosse comandante, em seu barco a
comandar, um dever a cumprir, e poderia Sténio limpar os bolsos de todos os
fazendeiros, industriais, comerciantes, usineiros, não lhe importaria, sorriria
apenas, talvez até pinicasse um olho cúmplice ao competente profissional.
Mas um comandante não é dono de sua
vontade, de suas simpatias. Queria seus passageiros protegidos contra os
perigos do mar e os imprevistos do mundo.
Tomara-lhe o sofá de porcelana com os
róseos namorados de mãos dadas, aqui lo
não o roubara Sténio, ganhara na sorte, sem trapaça.
Mas de que lhe servira a obra-prima?
Certamente igual ao comandante, era ele homem sem lar e sem família, sem porto
de pousada, ao leu da vida. Largaria aquela maravilha num quarto de prostíbulo,
em mãos da primeira mulher com quem dormisse. E tanto a desejava Clotilde...
Seria tempo ainda? De romper a solidão,
de terminar a longa espera? Fizera sessenta anos, tinha branco o cabelo, não
era mais senhor daquela força antiga a levantar fardos de charque e bacalhau,
barricas de manteiga, a sustentar a roda do leme em meio às tempestades,
timoneiro sem rival, mas conservara um vigor surpreendente em sua idade e o
coração era o daquele adolescente sem adolescência, íntegro e apto para o
grande e definitivo amor de sua vida.
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