quarta-feira, junho 11, 2014

Deixa passar uns dias e a gente dá um jeito, benzinho...
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 103









Foi informado, por um Dr. Siqueira de cara amarrada, estar sua entrada proibida naquela casa, ser sua filha uma reles prostituta da pior espécie, que abusara da confiança nela depositada.

Quanto a dinheiro, viesse ele pedir a mim, pois, se alguém tinha a obrigação de sustentar-lhe a cachaça e a filha, esse alguém era eu.

- Não tem onde cair morto... -  replicou Pedro Torresmo, dando um perfeito balanço em minha situação financeira.

Não se impressionou o Meritíssimo com o argumento, fechou a porta na cara do pai indignado. O bêbedo foi dali directo para a casa de Dondoca e, atingido em sua honra e na cachaça, aplicou-lhe uma surra dessas de criar bicho, quebrando o cabo da vassoura nova nas costas da inocente. Um prejuízo a mais em momento já tão melindroso.

Quando apareci à tarde, após constatar de longe a presença do juiz em seu gabinete de trabalho, tentando curar a dor-de-cotovelo no estudo das penalidades para os casos de sedução, estava Dondoca arriada, as costas e braços roxos das pancadas.

Fiquei comovido às lágrimas, cuidei daquele adorado corpo, cobrindo -o de beijos e carícias, busquei-lhe consolação. Mas o problema continuava de pé, como pagar as contas? O fim do mês se aproximava, o aluguel da casa, a feira semanal e os luxos.

No momento, as coisas parecem marchar para uma solução. Com o passar dos dias, a mãe aflita de Dondoca obteve uma audiência do juiz.

Contou-lhe do arrependimento da filha, vítima das blandiciosas falas de um tipo metido a poeta, a lhe mandar versos, a visitar-lhe a casa levado pela mão do próprio magistrado:

- Foi vosmicê mesmo que meteu ele em casa...

O que não era verdade, mas disso o Meritíssimo não sabia. Dondoca, solitária em suas noites, fora vítima e não culpada. Quase à força eu a havia tomado, mas ela só pensava em seu adorado Alberto, o ingrato “Bebeto”, como vivia a repetir.

 O doutor precisava ver o sofrimento da pobre, a chorar o dia inteiro, a lastimar seu destino, a recusar a comida, emagrecendo, e tudo isso porque já não via o doutor...

 Ele devia visitá-la nem que fosse para praticar um acto de caridade, impedir que a desgraçada fizesse uma loucura, pois não falava noutra coisa. Ela, a mãe, até estava dormindo lá, com medo do pior: a filha jogando querosene na roupa, botando fogo no corpo, morrendo envolta em labaredas.

Comoveu-se o ilustre luminar e preocupou-se também. Se a idiota fizesse uma burrada, tentasse o suicídio, não seria possível evitar o escândalo, as murmurações, a polícia, a coisa acabaria nos ouvidos de dona Ernestina e nem queria pensar na reacção de Zepelim... “Só por caridade”, disse, e voltou ao Beco das Três Borboletas.

As pazes foram feitas, sim, mas com o meu sacrifício. Foi-me possibilitada uma última entrevista com Dondoca mas não a sós: na cozinha se encontrava Pedro Torresmo, armado com o resto da vassoura, para garantir a moral e a propriedade privada do juiz.

Dondoca, as lágrimas rolando-lhe pelas faces, contou-me ter-lhe Bebeto perdoado por aquela vez, mas com a condição de que ela não voltasse a me falar, jamais!

 Que podia ela fazer, a pobre coitada? O pior era a decisão assentada pela qual a mãe e o pai passariam a viver com ela, morando no quarto dos fundos, cães de fila da integridade moral da rapariga, de sua completa fidelidade ao magistrado.

- Mas deixa passar uns dias e a gente dá um jeito, benzinho.

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