terça-feira, junho 10, 2014

Dondoca estava inconsolável!
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 102










Palavras de indescritível efeito: pensei que o Meritíssimo ia ter uma apoplexia, cair ali fulminado - imaginem o escândalo! - ou bem sacar um revólver e meter dois tiros, um em Dondoca, outro em mim.

Ficou vermelho, ficou pálido, estremeceu seu corpo como se houvesse sido chicoteado, tentou dar um passo em direcção a Dondoca, não pôde, tentou falar, emitiu apenas um som gutural, qualquer coisa entre o soluço e o arroto.

Fitou a cândida mulata com olhos de animal ferido e moribundo, lançou-me ameaçadora mirada, carregada de ódio, conseguiu articular:

- Cão! Poetastro!

Curvei a cabeça, preferi não responder.

- Serpente!

Era para Dondoca, mas ela não se reduziu ao silêncio como eu.

- Bebezinho querido, perdoe sua bichinha.. .

- Jamais! - e puxando a aba do chapéu, soltou uma cusparada em minha direcção, voltou-nos as costas e partiu. Da porta da rua atirou para a saia a chave da casa. Ficamos ali os dois, nus e atarantados.

Dondoca estava inconsolável. Habituara-se àquela boa vida, tendo de um tudo, regalada. Casa, comida, vestidos e chocolates. Também me acostumara, eu, aos chinelos e à manceba do juiz.

Naquela noite não pregamos olho, não ocupados no que estão pensando, mas a considerar a desgraça caída sobre nossas cabeças.

Que seria da vida de Dondoca? Voltar para a mísera choupana dos pais, a suportar os porres de Pedro Torresmo, a ajudar a mãe a lavar e engomar roupa?

Como fazê-lo, após esse tempo de unhas pintadas, de seda e de perfumes, de quase nenhum trabalho e multo dengue?

 Sustentá-la, dar-lhe o estado que a conta bancária do juiz lhe garantia, é-me impossível. Meus parcos vencimentos chegam-me apenas para os gastos essenciais, obrigam-me a viver neste subúrbio com meus pais.

Caso obtivesse o prémio do Arquivo Público - sinto-me animado com o facto de encontrar-se na direcção do Arquivo o ínclito Dr. Luís Henrique, cuja opinião sobre trabalho meu anterior, “depositário de úteis informações”, é conhecida - poder-lhe-ia oferecer um presente, um corte de fazenda, um par de sapatos, uns brincos para as orelhas, um anel talvez.

Isso, se de repente não aparecer um doutor qualquer a surripiar-me a láurea e o cheque. De qualquer maneira, esses vinte mil cruzeiros não bastariam para mantê-la senão por pouco tempo. Dondoca, entre o amor e o conforto, lastimou-se a noite inteira. Chorou em meus braços, terminou por adormecer sobre meu peito.

No dia seguinte, agravou-se a situação. Pedro Torresmo, tendo ido, como era seu hábito, esfaquear o juiz - dinheiro para cachaça - foi posto fora do gabinete de trabalho onde o magistrado, no silêncio e na meditação, escreve seus estudos jurídicos.
Ali recebia ele o pai de Dondoca, pois, em geral, respeita-lhe dona Ernestina as horas de elucubração. Confiante, chegara Pedro Torresmo a saudar o doutor juiz e saber notícias da saúde da excelentíssima patroa.

 Ali recebia ele o pai de Dondoca, pois, em geral, respeita-lhe dona Ernestina as horas de elucubração. Confiante, chegara Pedro Torresmo a saudar o doutor juiz e saber notícias da saúde da excelentíssima patroa.

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