segunda-feira, junho 09, 2014

Então era verdade!
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 101









Nada disso adiantou. Há quatro dias, em noite cálida, exactamente quando eu terminava de estender-me no leito e começava a regalar-me com uma pêra da meia dúzia trazida pelo juiz de uma visita à Bahia; enquanto Dondoca, numa brincadeira muito de seu gosto e divertida, escarranchada como a cavalo no meu peito, dobrava o busto para beijar-me ora nos olhos, ora nas orelhas ou para arrancar-me da boca um pedaço da fruta; exactamente quando, numa dessas gostosuras, eu lhe passara os braços pelas costas e sobre mim a derrubara, surgiu na porta aberta do quarto o eminente Dr. Siqueira, de chapéu de feltro desabado e óculos escuros, a rir, um riso de Drácula e a dizer com voz fúnebre:

 - Então era verdade!

Parecia, pelo menos. Se bem, caso ele me desse tempo, eu me disporia a discutir o assunto, pois em se tratando da verdade estou um verdadeiro craque.

Aprendi, ao redigir estas memórias do capitãode-longo-curso, ser arriscada empresa sair alguém proclamando a verdade, rua afora, só porque se encontra de posse de provas concretas ou tem o testemunho, sempre superestimado, de sua própria vista.

Ainda outro dia, dona Caçula e dona Pequena, respectivamente esposa e cunhada de Tinoco Pedreira, alardearam terem enxergado um disco voador nestes céus periperipianos, com aqueles seus dois pares de olhos que a terra há de comer.

Fizeram um bafafá danado, até repórteres de gazelas da capital surgiram por aqui para entrevistá-las, e retratos das duas velhas, apontando o céu, apareceram nos jornais. Depois se provou não ser disco nenhum o objecto redondo, cor de prata, velocíssimo e com dois holofotes de fogo.

A maré arrastou para a praia um enorme papagaio de papel impermeável que sob o sol parecia prateado, com duas rodelas vermelhas. Papagaio perdido, cortada a linha e arrancado o rabo, trazido pelo vento, e transformado, pelos olhos das velhotas voltados contra o Sol, em disco voador, marciano ou soviético conforme a tendência dos jornais.

Não era, porém, hora de tais considerações. No primeiro momento, confesso, não apreendi toda a gravidade daquela aparição, de tal maneira haviam-me impressionado os óculos negros e o chapéu de aba caída sobre a testa.

Óculos e chapéu a ocultarem a algum noctívago habitante de Periperi a identidade do juiz, vejam os senhores a premeditação do Meritíssimo.

Foi o grito de Dondoca, saltando do meu peito para o outro lado da cama, que veio despertar-me por inteiro para o drama. Engoli o pedaço de pêra e não encontrei palavras.

Ali, na entrada do quarto, a mão esquerda no trinco da porta a mantê-la aberta, a direita apontada para a cama, o dedo em riste, a voz embargada e trémula, era o eminente jurista a perfeita imagem da virtude ofendida, da confiança enganada, da amizade traída, enfim a perfeita imagem do chifrado clássico, do imortal Otelo. Não me foi possível deixar de admirá-lo.

Não podia continuar na cama, deitado, a olhar boquiaberto o Meritíssimo cabrão. Levantei-me, calcei os chinelos, ouvi um grito saído do fundo da alma, partido de um coração desfeito:

- Saia dos meus chinelos, seu crápula!

Saí, fiquei com os pés descalços nos frios ladrilhos de barro e essa pequenez de homem tão eminente custou-me um resfriado ainda hoje a aíanazar-me a vida.

 A cena, da qual fui testemunha e personagem, estava assim disposta: na entrada do quarto, trágico e acusador, o juiz aposentado; do outro lado, próximo à janela, as mãos tentando esconder a nudez numa prova talvez um pouco tardia de pudicícia e recato, soluçava Dondoca; entre os dois o leito, local do crime, ainda quente, e eu, com uma cara de idiota, a olhar meu umbigo.

Creio que poderíamos ter demorado ali, nessa imóvel postura, horas e dias, se Dondoca não houvesse levantado os formosos olhos para o juiz e pronunciado com voz terna:

- Betinho! Bebeto, meu torrão de açúcar..,

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