Então era verdade! |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 101
Nada disso adiantou. Há quatro dias, em
noite cálida, exactamente quando eu terminava de estender-me no leito e
começava a regalar-me com uma pêra da meia dúzia trazida pelo juiz de uma
visita à Bahia; enquanto Dondoca, numa brincadeira muito de seu gosto e
divertida, escarranchada como a cavalo no meu peito, dobrava o busto para
beijar-me ora nos olhos, ora nas orelhas ou para arrancar-me da boca um pedaço
da fruta; exactamente quando, numa dessas gostosuras, eu lhe passara os braços
pelas costas e sobre mim a derrubara, surgiu na porta aberta do quarto o
eminente Dr. Siqueira, de chapéu de feltro desabado e óculos escuros, a rir, um
riso de Drácula e a dizer com voz fúnebre:
-
Então era verdade!
Parecia, pelo menos. Se bem, caso ele me
desse tempo, eu me disporia a discutir o assunto, pois em se tratando da
verdade estou um verdadeiro craque.
Aprendi, ao redigir estas memórias do
capitãode-longo-curso, ser arriscada empresa sair alguém proclamando a verdade,
rua afora, só porque se encontra de posse de provas concretas ou tem o
testemunho, sempre superestimado, de sua própria vista.
Ainda outro dia, dona Caçula e dona
Pequena, respectivamente esposa e cunhada de Tinoco Pedreira, alardearam terem
enxergado um disco voador nestes céus periperipianos, com aqueles seus dois
pares de olhos que a terra há de comer.
Fizeram um bafafá danado, até repórteres
de gazelas da capital surgiram por aqui
para entrevistá-las, e retratos das duas velhas, apontando o céu, apareceram
nos jornais. Depois se provou não ser disco nenhum o objecto redondo, cor de
prata, velocíssimo e com dois holofotes de fogo.
A maré arrastou para a praia um enorme
papagaio de papel impermeável que sob o sol parecia prateado, com duas rodelas
vermelhas. Papagaio perdido, cortada a linha e arrancado o rabo, trazido pelo
vento, e transformado, pelos olhos das velhotas voltados contra o Sol, em disco
voador, marciano ou soviético conforme a tendência dos jornais.
Não era, porém, hora de tais
considerações. No primeiro momento, confesso, não apreendi toda a gravidade
daquela aparição, de tal maneira haviam-me impressionado os óculos negros e o
chapéu de aba caída sobre a testa.
Óculos e chapéu a ocultarem a algum
noctívago habitante de Periperi a identidade do juiz, vejam os senhores a
premeditação do Meritíssimo.
Foi o grito de Dondoca, saltando do meu
peito para o outro lado da cama, que veio despertar-me por inteiro para o
drama. Engoli o pedaço de pêra e não encontrei palavras.
Ali, na entrada do quarto, a mão
esquerda no trinco da porta a mantê-la aberta, a direita apontada para a cama,
o dedo em riste, a voz embargada e trémula, era o eminente jurista a perfeita
imagem da virtude ofendida, da confiança enganada, da amizade traída, enfim a
perfeita imagem do chifrado clássico, do imortal Otelo. Não me foi possível
deixar de admirá-lo.
Não podia continuar na cama, deitado, a
olhar boqui aberto o Meritíssimo
cabrão. Levantei-me, calcei os chinelos, ouvi um grito saído do fundo da alma,
partido de um coração desfeito:
- Saia dos meus chinelos, seu crápula!
Saí, fiquei com os pés descalços nos
frios ladrilhos de barro e essa pequenez de homem tão eminente custou-me um
resfriado ainda hoje a aíanazar-me a vida.
A
cena, da qual fui testemunha e personagem, estava assim disposta: na entrada do
quarto, trágico e acusador, o juiz aposentado; do outro lado, próximo à janela,
as mãos tentando esconder a nudez numa prova talvez um pouco tardia de
pudicícia e recato, soluçava Dondoca; entre os dois o leito, local do crime,
ainda quente, e eu, com uma cara de idiota, a olhar meu umbigo.
Creio que poderíamos ter demorado ali,
nessa imóvel postura, horas e dias, se Dondoca não houvesse levantado os
formosos olhos para o juiz e pronunciado com voz terna:
- Betinho! Bebeto, meu torrão de
açúcar..,
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