Comandante Vasco Moscoso, capitão de longo-curso? |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Último Episódio Nº 130
Naquela hora já o telégrafo nacional e o
cabo submarino transmitiam, para o país inteiro e para os cinco continentes, a
notícia do imenso cataclismo e do génio do Comandante Vasco Moscoso de Aragão,
único a prever a tempestade e a salvar o seu navio.
Telegramas publicados em
manchetes nos jornais da Bahia, durante dias seguidos, avidamente lidos em
Periperi, decorados por Zéqui nha
Curvelo.
Inclusive os que contavam a homenagem prestada ao invencível capitão
de longo curso, pela Companhia Costeira: emocionante festa a bordo do Ita por
ele salvo e no qual regressava a Salvador.
Foi-lhe entregue um diploma
recordando o feito e comemorativa medalha de ouro de lei. Da ponte de comando
ele fitava o mar: de crista levantada, modesto, ele sorria.
Da moral da história e da moral corrente aqui
aporto ao fim do meu trabalho, desta pesqui sa
em tão controvertida história. Que posso acrescentar?
Notícias da chegada do
comandante ao cais da Bahia, com banda de música a esperá-lo, representante do
Governador, o Capitão-dos-Portos e Américo Antunes em delirante euforia?
Com ar
dos seus retratos nos jornais, do discurso que foi obrigado a pronunciar no
rádio, ainda a bordo?
De seu triunfal desembarque em Periperi, no trem das
duas, sob foguetório e vivas, levado nos ombros dos amigos até a casa de
janelas verdes sobre o mar?
Os adversários da véspera eram agora seus mais
entusiastas admiradores, menos Chico Pacheco, que preferira mudar-se; não
cabiam ali, ao mesmo tempo, ele com seu processo e o comandante com sua glória.
Dizer da emoção de Zequi nha Curvelo
ao receber o cinzeiro com a foto do Ita gravada na cerâmica? Das perguntas que
lhe fizeram, atropeladas? Das exigências para que contasse tudo, detalhe por
detalhe, sem esquecer nenhum?
A conversa, à noite, na grande sala do
telescópio, quando recordou Clotilde? Foi um momento de lirismo:
- Tão bonita ... E com tanto rapaz a
bordo, foi olhar para mim, tomada de paixão... Não tinha mais de vinte
anos, eu dizia-lhe Clô ao luar, no tombadilho, tinha os cabelos escorridos e a
pele cobreada, mameluca do Amazonas...
Veio me tirar para dançar com ela,
imaginem. Apareceu no cais para me dizer adeus na hora da partida.
Como vêem, já novamente torna-se difícil
distinguir a verdade, despi-la dos véus da fantasia. Afinal, a quem amara o
comandante, a quem se declarara na noite da grande lua, na coberta? A Clotilde,
a Grande Baqueana, madura e com chiliques, ou à agreste e impudica Moema, cuja
mão amparara seu braço na hora difícil, a mameluca com urgência de chegar a seu
dramático destino?
Quanto a mim, não sei e desisto de saber.
Uma coisa parece-me certa, no entanto, e
digna de registo: se o destino ficou ao lado do comandante e o favoreceu, não
deve ser esquecida nessa ajuda a ruptura de seu noivado com Clotilde.
Já
imaginaram a Grande Baqueana em Periperi, a infernar a vida do subúrbio, a
tocar ao piano árias de óperas e sonatas, a fazer da gloriosa velhice do
capitão de longo curso um mísero dia-a-dia de pequenas brigas, limitações,
chiliques, calundus?
Não teria vivido ele, honrado e feliz, os oitenta e dois
anos que viveu, se concretizasse noivado e casamento, a desgraçada ideia de
trazê-la a reboque.
Assim, nada mais tenho a contar, -minha
tarefa está finda. vou enviar este trabalho - custou-me esforço e sofrimento -
ao Júri nomeado pelo director do Arqui vo
Público. Se obtiver o prémio, comprarei um vestido para Dondoca e um vaso onde
colocar flores; está fazendo falta um troço desses na saleta clara da casinha
do Beco das Três Borboletas.
Não se espantem e permitam que lhes
relate os últimos acontecimentos nessa frente da minha batalha pela vida. O
Meritíssimo veio às boas, vivemos os três agora em perfeito entendimento e em paz. Aconteceu ter
dona Ernestina, digna e gorda esposa do ilustre luminar, descoberto (carta
anônima, com certeza) aquela nocturna ida do Dr. Siqueira à casa de Dondoca.
Não lhe salvaram os óculos negros e o chapéu desabado. O Zepelim entrou em fúria,
parecia a tempestade de Belém. Não restou ao juiz aposentado outra solução
senão mentir. Fora àquela casa de moral suspeita, é verdade. Mas o fizera para
cumprir um dever e ajudar um amigo. O dever de evitar um escândalo em Periperi;
o amigo a ajudar era este modesto historiador provinciano.
Não sabia ela,
Ernestina, que o pai dessa lastimável rapariga, Pedro Torresmo, jurara invadir
a casa onde a filha e o amante coabitam? Ao ter notícia dessas ameaças, e inqui eto pela vida e reputação do rapaz, ali fora,
forçando sua natureza e seus princípios, para avisá-lo. Nobre atitude, dela não
se envergonhava.
Mas o Zepelim exigiu provas e foi
obrigado o Meritíssimo a rastejar a meus pés, pedir-me desculpas, suplicar-me
que voltasse a dividir com ele o leito e os dengues de Dondoca, assumindo eu,
no entanto, perante a agitada matrona sua esposa, a responsabilidade inteira da
mulata.
Aceitei, para servi-lo, como lhe fiz ver, sem deixar transparecer minha
alegria, a festa a irromper pelo meu peito. Pois já me encontrava quase
disposto a cair nos braços da sensitiva Baqueana, aquela maduríssima viúva e
veranista de quem tracei o perfil em páginas anteriores. Tão necessitado
andava. Mas foi nos braços de Dondoca que pude minha fome saciar.
Desde então corre tudo no melhor dos
mundos, somos três almas o Meritíssimo, Dondoca e eu, a conversar e a rir, a
levar essa vida para a frente, enquanto nos permitem os estadistas, a se
ameaçarem com foguetes e bombas de hidrogénio.
Um dia, por descuido, uma bomba
explode e nós pagaremos as custas do processo.
Voltando, porém, ao comandante e às suas
aventuras, objecto único, repito, destas pálidas letras, confesso chegar ao fim
de sua história imerso em confusão e dúvida.
Afinal, digam-me os senhores com suas
luzes e sua experiência, onde está a verdade, a completa verdade? Qual a moral
a extrair desta história por vezes salafrária e chula? Está a verdade naqui lo que sucede todos os dias, nos quotidianos
acontecimentos, na mesqui nhez e
chatice da vida da imensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que
nos é dado sonhar para fugir de nossa triste condição? Como se elevou o homem
em sua caminhada pelo mundo: através do dia-a-dia de misérias e futricas, ou
pelo livre sonho, sem fronteiras nem limitações? Quem levou Vasco da Gama e
Colombo ao convés das caravelas? Quem dirige as mãos dos sábios a mover as
alavancas na partida dos seputniques, criando novas estrelas e uma lua nova no
céu desse subúrbio do universo? Onde está a verdade, respondam-me por favor: na
pequena realidade de cada um ou no imenso sonho humano?
Quem a conduz pelo
mundo afora, iluminando o caminho do homem? O Meritíssimo Juiz ou o paupérrimo
poeta? Chico Pacheco, com sua integridade, ou o Comandante Vasco Moscoso de
Aragão, capitão de longo curso?
Rio, Janeiro de 1961.
FIM
NOTA - O sonho comanda o mundo... é o que nos diz Jorge Amado em mais esta bela história e eu dedico-lhe este lindo poema de António Gedeão que é o que parece estar mais a propósito...
Pedra FilosofalEles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'
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