Foi nesse momento que a ideia do roubo lhe atravessou o espírito |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 122
Muitas histórias lhe contaria, aflições de
S.O.S., perigos em portos de ópio e contrabando, tinha uma vida excitante a
entregar-lhe, a depositar em seu seio a dividir com ela.
No dia seguinte seria apresentado à sua
família, jantaria em sua casa, faria o pedido oficial.
Do completo e divinatório conhecimento
da ciência da marinheiraria na manhã daquele dia da etapa final, quando as
barrentas águas do rio Amazonas já penetravam pelo mar e na distância ouvia-se
o rumor da pororoca, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão pela primeira vez, em
sua longa e movimentada vida, cometeu um furto; para logo depois, aliás, agir
com a maior correcção, calcando aos pés a intensa curiosidade, mantendo íntegra
sua promessa de discrição.
Aconteceu o roubo no salão, ainda
deserto na hora matinal quando o comandante iniciou sua última inspecção do
navio. Tomara amizade àquele Ita.
Não acumulara a viagem incidentes dignos
de nota, não houvera ameaça de naufrágio, nem motim da tripulação, nem graves
problemas de navegação a resolver, enlouquecida a bússola, desvairado o
sextante; não descobrira sequer revolucionários a bordo, como ameaçara o
deputado paraibano.
Mas mantivera a disciplina, conduzira o navio,
e ali encontrara a mulher de sua vida. Voltaria com ela para Periperi, para a
convivência dos amigos, sua crista levantada como jamais, pois quem poderia
agora duvidar de seu título e de seus feitos?
Foi nesse momento que a ideia de roubo
atravessou-lhe o espírito.
Amava aquele Ita, queria ter, em meio
aos instrumentos náuticos na grande mesa da sala em sua casa, uma recordação
daquela sua última viagem a comandar. Quando regressasse, seria na condição de
passageiro, de passageiro de honra, é certo, tratado com a consideração devida
a um capitão-de-longo-curso, credor de tão grande obséqui o
à Companhia, mas já não lhe estariam entregues o destino do navio, da
tripulação, dos passageiros.
Uma recordação simples, uma tolice qualquer,
cinzeiros, por exemplo, com o escudo da Costeira e a fotografia do Ita gravados
na cerâmica.
Fora um deles destinado a prémio na
víspora, outros se encontravam sobre as mesas servindo aos fumantes. Vasco
relanceou o olhar pelas circunvizinhanças, não viu ninguém. O cinzeiro
desapareceu no bolso direito da túnica.
E, como para habituar-se basta começar, outro
cinzeiro foi parar no bolso esquerdo. Não fora súbito ataque de cleptomania e
sim a lembrança daquele bom e leal Zequi nha
Curvelo.
Que melhor presente poderia levar-lhe,
que melhor prova de amizade?
Efectuado o roubo, com tanta presteza e
eficiência, não sentiu remorsos o comandante. Era rica a Companhia Nacional de
Navegação Costeira, nada significariam em seu orçamento dois cinzeiros a mais
ou a menos.
Não os teria afanado, no entanto, se outros
iguais a eles existissem à venda, no navio. Informara-se do próprio comissário
e soubera ter sido destinado ao prémio o último exemplar da remessa recebida.
Remorso causara-lhe a peça de biscuit, oferta
um tanto forçada do falso Dr. Sténio. Não se tratara de roubo, no entanto. E
dera tamanha satisfação a Clotilde, ela lhe dissera, ainda na véspera à noite,
quando foram olhar a lua e mar em despedida, ter percebido o seu amor no
momento exacto em que ele lhe trouxera o sofá de porcelana com o romântico
casal de namorados.
Ia nesses pensamentos pelo tombadilho,
quando encontrou o advogado paraense, Dr. Firmino Morais. Estava o causídico
debruçado à amurada, o olhar perdido em meditação, profunda. Voltou-se ao rumor
dos passos do comandante, saudaram-se, ficaram a conversar.
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