quinta-feira, julho 03, 2014

Foi nesse momento que a ideia do roubo lhe atravessou o espírito
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 122









Muitas histórias lhe contaria, aflições de S.O.S., perigos em portos de ópio e contrabando, tinha uma vida excitante a entregar-lhe, a depositar em seu seio a dividir com ela.

No dia seguinte seria apresentado à sua família, jantaria em sua casa, faria o pedido oficial.

Do completo e divinatório conhecimento da ciência da marinheiraria na manhã daquele dia da etapa final, quando as barrentas águas do rio Amazonas já penetravam pelo mar e na distância ouvia-se o rumor da pororoca, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão pela primeira vez, em sua longa e movimentada vida, cometeu um furto; para logo depois, aliás, agir com a maior correcção, calcando aos pés a intensa curiosidade, mantendo íntegra sua promessa de discrição.

Aconteceu o roubo no salão, ainda deserto na hora matinal quando o comandante iniciou sua última inspecção do navio. Tomara amizade àquele Ita.

Não acumulara a viagem incidentes dignos de nota, não houvera ameaça de naufrágio, nem motim da tripulação, nem graves problemas de navegação a resolver, enlouquecida a bússola, desvairado o sextante; não descobrira sequer revolucionários a bordo, como ameaçara o deputado paraibano.

 Mas mantivera a disciplina, conduzira o navio, e ali encontrara a mulher de sua vida. Voltaria com ela para Periperi, para a convivência dos amigos, sua crista levantada como jamais, pois quem poderia agora duvidar de seu título e de seus feitos?

 Foi nesse momento que a ideia de roubo atravessou-lhe o espírito.

Amava aquele Ita, queria ter, em meio aos instrumentos náuticos na grande mesa da sala em sua casa, uma recordação daquela sua última viagem a comandar. Quando regressasse, seria na condição de passageiro, de passageiro de honra, é certo, tratado com a consideração devida a um capitão-de-longo-curso, credor de tão grande obséquio à Companhia, mas já não lhe estariam entregues o destino do navio, da tripulação, dos passageiros.

 Uma recordação simples, uma tolice qualquer, cinzeiros, por exemplo, com o escudo da Costeira e a fotografia do Ita gravados na cerâmica.

Fora um deles destinado a prémio na víspora, outros se encontravam sobre as mesas servindo aos fumantes. Vasco relanceou o olhar pelas circunvizinhanças, não viu ninguém. O cinzeiro desapareceu no bolso direito da túnica.

 E, como para habituar-se basta começar, outro cinzeiro foi parar no bolso esquerdo. Não fora súbito ataque de cleptomania e sim a lembrança daquele bom e leal Zequinha Curvelo.

Que melhor presente poderia levar-lhe, que melhor prova de amizade?

Efectuado o roubo, com tanta presteza e eficiência, não sentiu remorsos o comandante. Era rica a Companhia Nacional de Navegação Costeira, nada significariam em seu orçamento dois cinzeiros a mais ou a menos.

 Não os teria afanado, no entanto, se outros iguais a eles existissem à venda, no navio. Informara-se do próprio comissário e soubera ter sido destinado ao prémio o último exemplar da remessa recebida.

 Remorso causara-lhe a peça de biscuit, oferta um tanto forçada do falso Dr. Sténio. Não se tratara de roubo, no entanto. E dera tamanha satisfação a Clotilde, ela lhe dissera, ainda na véspera à noite, quando foram olhar a lua e mar em despedida, ter percebido o seu amor no momento exacto em que ele lhe trouxera o sofá de porcelana com o romântico casal de namorados.

Ia nesses pensamentos pelo tombadilho, quando encontrou o advogado paraense, Dr. Firmino Morais. Estava o causídico debruçado à amurada, o olhar perdido em meditação, profunda. Voltou-se ao rumor dos passos do comandante, saudaram-se, ficaram a conversar.

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