sábado, agosto 09, 2014

A festa durou dois dias
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 23



















Teria uns cinco anos, não mais, quando o coronel Boaventura trouxe o padre Afonso para benzer a capela que dona Ernestina mandara erguer na fazenda em pagamento de promessa a São José, seu protector, a quem o Coronel devia a vida -  a São José e a Natário que apertara o gatilho a tempo: com sua licença, Coronel.

A festa durou dois dias: multidão de convidados, até da Bahia
veio gente. O padre celebrou missa, consagrou a imagem do santo, casou os amancebados, baptizou uma batelada de meninos e uns quantos homens feitos todavia ímpios.

Despropósito de comilança, desparrame de bebidas, correu cachaça à grande nas casas dos trabalhadores; um despotismo.

 Modesto servo de Deus, partidário incondicional do Coronel, modelo de fé cristã e de civismo grapiúna, padre Afonso pecava pela gula, comia por um regimento.

Natário aproveitou a festa para casar-se com Zilda com quem vivia amantizado havia mais de ano. Ele a encontrara vagando na estrada de Água Preta, pálida, raquítica e assustada, órfã de pai e de mãe, enterrados juntos pela bexiga. Uma ronda de arrenegados pisava-lhe os calcanhares, malta de cães atrás de cadela sem dono, cada qual com seu trabuco.

 Mais por desenfado do que por apetite, Natário entrou na competição, mandou Mané Bragado para a terra dos pés juntos: o lambanceiro o desconhecera e puxara a arma.

 Tendo a magricela custado vida de homem, a levou consigo e em seguida lhe fez um filho.

Calada e submissa, trabalhadeira e asseada — a casinha de sopapo dava gosto -  Zilda ganhou corpo e cores, consideração e afecto, ficou de vez. Onde arranjou coragem para dizer a seu homem e senhor do desejo que tinha de se casar com ele?

 - No padre, para não viver contra a lei de Deus; no juiz, não precisava não.

Quando a recolhera, Natário ainda morava em casa de Florêncio; na rede de solteiro a emprenhou; sob as vistas de Bernarda, por assim dizer. Bernarda continuava a dormir na sala mas com a presença de Zilda perdeu o lugar na rede, o balanço e o peito acolhedor.

Por ocasião do baptizado colectivo, Ana os convidou para padrinhos da menina. Jeitosa, Zilda fez, com trapos velhos, uma boneca de pano para a afilhada. Natário nada lhe deu além do que ela mais desejava: poder chamá-lo de padrinho, beijar-lhe a mão e receber a bênção.

Enquanto Florêncio permaneceu na Atalaia, Bernarda viveu mais em casa dos padrinhos do que na dos pais. Beirava os dez anos quando Florêncio, tendo-se desentendido com o Coronel por dê-cá-aquela-palha, arrogância de jagunço que se recusava a pegar no pesado, se mudou para a Fazenda da Boca do Mato - o coronel Benvindo andava à procura de um bom clavinoteiro para gritar com os alugados. Natário e Zilda ofereceram-se para ficar com a afilhada; Florêncio nem quis falar no assunto.

 Precisavam de Bernarda para ajudar na criação da irmãzinha; naquele meio tempo Ana desovara mais uma filha, Irará de nome, Irá de apelido.

Depois, quando se deu o acontecido, Zilda opinou que já então
Florêncio andava de olho na menina.

Com a mudança dos compadres, somente de raro em raro Natário voltara a ver Bernarda. Aos trezes anos era moça feita, bonitona, cobiçada.

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