segunda-feira, agosto 25, 2014

Agora abra a boca, dona.
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)


Episódio Nº 36
















 - Um queixal! Se a moça quiser e se um cristão arranjar uma torquês, posso arrancar.

A voz de Manuel Bernardes voltou a ressoar, ainda em dúvida
e em ameaça:

 - Já arrancou algum?

Naquele cu-de-judas, calçador de ferraduras acabava sendo
médico de bichos. Por mais de uma vez Castor extraíra dentes de burros e cavalos. De mulher e homem, ainda não, mas que diferença faz?

 - Não tem conta.

Nos guardados do depósito, encontraram a torquês. O negro
pediu que obtivessem um pouco de cachaça:

 - Pra moça tomar um gole e sentir menos.

Um tropeiro trouxe uma garrafa acima da metade. Tição deu
uma provada, elogiou: é da boa. Explicou a Clorinda:

 - Vai doer um pouco, se quiser que arranque tem que aguentar.

 - O sorriso infundia confiança: — Mas é uma dor só, depois passa, se acabou.

 - Pois me faça essa caridade.

Gentil, o negro estendeu a garrafa ao sarará, oferecendo:

 - Uma lambada? É bom pra sossegar o juízo.

 - Dispenso. — Ao lado da mulher, segurava a repetição, impassível.

Castor não se deu por achado:

 - Dispensa? Não gosta, ou é crente? A moça é que não pode dispensar, goste ou não goste.

Pela forma como tomou a garrafa, logo se viu que Clorinda não recusava um trago. Parou até de gemer.

— Agora, abra a boca, dona. O fifó, Coroca!

Apalpou as gengivas da queixosa que se remexia a cada toque da mão incómoda. No silêncio espesso e tenso, uma atmosfera de alarme e apreensão envolvia os presentes, atentos a cada palavra, a cada gesto.

 A velha tirou a garrafa da mão da filha, serviu-se ela também. Tição riu e comentou:

 - Que é isso, vovó? Também vai arrancar dente? Segure aí.

 - Entregou-lhe a torquês, voltou-se para o malcriado: - Me empreste o punhal, seu Manuel.

 - Pra quê?

- Já vai ver. Preciso afastar a gengiva pra poder segurar o dente com a torquês.

Recebeu a arma, receitou outro gole de cachaça para Clorinda.

- Assim, ela vai ficar bêbada.  - Alarmou-se a velha.

 - Quanto mais bêbada melhor pra ela.

Pedro Cigano comprovou e louvou, com um movimento de cabeça, o desembaraço da chorona: emborcara a garrafa com disposição.

 - Se prepare que vai doer um pouquinho. — Avisou Castor.

- Pior do que está, não pode ser. - A cachaça, se não a embriagara, dera-lhe coragem.

Pedindo a Coroca para movimentar o candeeiro de forma que pudesse ver dentro da boca aberta, o negro separou a gengiva do dente, pouco a pouco, com a ponta do punhal; filetes de sangue escorreram pelos cantos dos lábios da mulher.

 Manuel Bernardes desviou a vista, olhou em frente. Além dos gemidos abafados, não se ouvia o menor ruído. Clorinda, de quando em quando, se agitava ao sentir a picada da lambedeira.

 - Pronto  - Comunicou Castor. — Passe a garrafa para ela, vovó.

Devolveu o punhal, Manuel Sentardes limpou o sangue na calça cáqui. Tição esperou que a mulher terminasse de beber, fê-la escancarar a boca, ainda assim teve dificuldade para introduzir a torquês. 

Não foi fácil tampouco segurar o queixal entre as tenazes: apesar da delicadeza e da habilidade demonstradas pelo ferrador de animais, a torquês mordeu duas ou três vezes a gengiva machucada, fazendo Clorinda contorcer-se.


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