Agora abra a boca, dona. |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 36
-
Um queixal! Se a moça qui ser e se um
cristão arranjar uma torquês, posso arrancar.
A voz de Manuel Bernardes voltou a
ressoar, ainda em dúvida
e em ameaça:
-
Já arrancou algum?
Naquele cu-de-judas, calçador de ferraduras
acabava sendo
médico de bichos. Por mais de uma vez
Castor extraíra dentes de burros e cavalos. De mulher e homem, ainda não, mas
que diferença faz?
-
Não tem conta.
Nos guardados do depósito, encontraram a
torquês. O negro
pediu que obtivessem um pouco de
cachaça:
-
Pra moça tomar um gole e sentir menos.
Um tropeiro trouxe uma garrafa acima da
metade. Tição deu
uma provada, elogiou: é da boa. Explicou
a Clorinda:
-
Vai doer um pouco, se qui ser que
arranque tem que aguentar.
- O sorriso infundia confiança: — Mas é
uma dor só, depois passa, se acabou.
-
Pois me faça essa caridade.
Gentil, o negro estendeu a garrafa ao
sarará, oferecendo:
-
Uma lambada? É bom pra sossegar o juízo.
-
Dispenso. — Ao lado da mulher, segurava a repetição, impassível.
Castor não se deu por achado:
-
Dispensa? Não gosta, ou é crente? A moça é que não pode dispensar, goste ou não
goste.
Pela forma como tomou a garrafa, logo se
viu que Clorinda não recusava um trago. Parou até de gemer.
— Agora, abra a boca, dona. O fifó, Coroca!
Apalpou as gengivas da queixosa que se
remexia a cada toque da mão incómoda. No silêncio espesso e tenso, uma
atmosfera de alarme e apreensão envolvia os presentes, atentos a cada palavra, a
cada gesto.
A
velha tirou a garrafa da mão da filha, serviu-se ela também. Tição riu e
comentou:
-
Que é isso, vovó? Também vai arrancar dente? Segure aí.
-
Entregou-lhe a torquês, voltou-se para o malcriado: - Me empreste o punhal, seu
Manuel.
- Pra quê?
- Já vai ver. Preciso afastar a gengiva
pra poder segurar o dente com a torquês.
Recebeu a arma, receitou outro gole de
cachaça para Clorinda.
- Assim, ela vai ficar bêbada. - Alarmou-se a velha.
-
Quanto mais bêbada melhor pra ela.
Pedro Cigano comprovou e louvou, com um
movimento de cabeça, o desembaraço da chorona: emborcara a garrafa com disposição.
-
Se prepare que vai doer um pouqui nho.
— Avisou Castor.
- Pior do que está, não pode ser. - A
cachaça, se não a embriagara, dera-lhe coragem.
Pedindo a Coroca para movimentar o
candeeiro de forma que pudesse ver dentro da boca aberta, o negro separou a
gengiva do dente, pouco a pouco, com a ponta do
punhal; filetes de sangue escorreram pelos cantos dos lábios da mulher.
Manuel Bernardes desviou a vista, olhou em frente. Além dos
gemidos abafados, não se ouvia o menor ruído. Clorinda, de quando em quando, se
agitava ao sentir a picada da lambedeira.
-
Pronto - Comunicou Castor. — Passe a
garrafa para ela, vovó.
Devolveu o punhal, Manuel Sentardes
limpou o sangue na calça cáqui .
Tição esperou que a mulher terminasse de beber, fê-la escancarar a boca, ainda
assim teve dificuldade para introduzir a torquês.
Não foi fácil tampouco
segurar o queixal entre as tenazes: apesar da delicadeza e da habilidade
demonstradas pelo ferrador de animais, a torquês mordeu duas ou três vezes a
gengiva machucada, fazendo Clorinda contorcer-se.
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