sábado, agosto 23, 2014

Tu assunta mesmo?
TOCAIA GRANDE

(Jorge Amado)

Episódio Nº 35


















A um sinal do homem, andaram para o depósito de cacau, os Jagunços abriram passagem para o grupo, igualmente interessados nas peripécias da ocorrência.

 A assistência crescera com a presença de Pedro Cigano, de Bernarda, de Lupiscínio, de Bastião da Rosa, de trabalhadores e tropeiros. Trocavam cochichos, olhavam de soslaio para o homem armado, o carpina fez um gesto, Bastião da Rosa respondeu com outro, confirmando.

 Haviam reconhecido o macambúzio: envelhecera e estava enxodozado, o que o tornava ainda mais perigoso. Lupiscínio sentiu um arrepio na espinha, um frio nos quibas: tudo podia acontecer.

Tição pediu que a mulher se sentasse em cima de uns sacos de cacau e abrisse a boca mas ela não se moveu, continuou gemendo à espera da decisão do sarará que insistiu na pergunta:

 - Tu assunta mesmo?

O negro riu novamente, brincalhão e bem falante:

- Já disse a vossa senhoria.

 - Não sou senhoria, nem sua nem de ninguém. Sou Manuel
Bernardes, de Itacaré, e não aprecio zombaria. Vou mandar ela sentar mas o risco é seu. Abrandou a voz ao dirigir-se à mulher:

 - Vai, senta, Clorinda, abre a boca, mostra o dente ao moço.
Lupiscínio e Bastião da Rosa tinham-no identificado antes
que ele proclamasse o nome façanhudo em aviso e ameaça.

Clavinoteiro a serviço dos Badaró durante as lutas travadas com o coronel Basílio de Oliveira, no cerco final quando a munição terminou e ele se viu sozinho, com uma bala no ombro, lavado em sangue, mesmo assim não se entregou, não se rendeu; armado com o punhal, ainda feriu três.

 Preso e amarrado, iam acabar com ele na malvadeza mas o coronel Basílio não consentiu: macho daquela espécie não se mata a sangue-frio.

 Mandou que o soltassem e lhe estendeu a mão. Manuel Bernardes passou a viver em Itacaré onde plantava milho e mandioca e possuía uma casa de farinha. Fama capaz de rivalizar com a dele, só mesmo a do capitão Natário da Fonseca.
Naquela hora todos temeram pela vida do negro Tição, rapaz
trabalhador e presepeiro, muito estimado. Ferrador de mão segura e forte ao bater o cravo, ferreiro de dedos ágeis e engenhosos no trato dos metais.

 Defeito sério, aparentava possuir apenas um: era abelhudo a mais não poder, metia o bedelho em tudo, tudo querendo resolver, o belzebu. Ia pagar caro o atrevimento, quem mandara se intrometer? Decerto não tinha competência nem traquejo, não passava de um negro maneiro e folgazão.

Adolescente, intrometera-se com as girondas do Senhor Barão, a legítima e a preferida. Por vales e montes, canaviais e bagaceiras, pelo campo verde e pelo céu azul cavalgara as duas montarias exclusivas do senhor de engenho, arriscando a cabeça e os ovos.

 Demonstrara traquejo e competência, perdera o medo de uma vez por todas.

 - Muito prazer, seu Manuel. Meu nome é Castor Abduim, me chamam de Tição por ser ferreiro. Já tive outros apelidos, posso lhe contar se um dia vosmicê quiser ouvir. Agora, vamos aliviar a sua dona. No mundo não há coisa tão ruim que se compare a dor de dente, é o que ouço dizer e repetir.

Eu nunca tive, graças a Deus. Riu de um lado a outro da boca, exibindo os dentes brancos.

2

 - É em baixo ou em cima? De que lado, dona?

 - No de baixo. Nesse aqui.

Os assistentes se aproximaram, todos queriam ver, os olhares iam do clavinoteiro ao negro, da mulher à velha. Tição pediu a Coroca que segurasse o fifó na altura do rosto de Clorinda.

Mal conseguia enxergar à luz vacilante e fumacenta do candeeiro; foi tenteando com os dedos no lado direito até que a padecente gemeu mais fone e ele sentiu o buraco da cárie no molar. 

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