sexta-feira, agosto 22, 2014

E tu assunta de dôr de dente?
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)




Episódio Nº 34

















Os renitentes jogadores de ronda suspenderam os lances, tropeiros e trabalhadores despertaram, puseram-se de pé, saíram a ver o que estava acontecendo. Ao lado de Coroca na cama de campanha, o negro Castor semi-ergueu-se atento.

 - Até parece que estão matando alguém -  Comentou a mulher-dama.

 - Vou ver. — Disse o negro, enfiando as calças: - Já volto.

 - Também vou. - Coroca apurou o ouvido: — É choro de mulher.

Perdurava em torno de Tocaia Grande uma legenda de perigo
e violência — não ganhara aquele nome por acaso — se bem ultimamente não se tivesse notícia de bafafá de vulto sucedido por ali. Vez por outra um tiro, uma facada, brigas em torno dos baralhos sebosos. Dias antes, dois cabras quase se acabaram no punhal para decidir qual deles ia passar a noite com Bernarda; correu sangue mas não houve morte — incidente de pouca monta.

Ainda assim, moradores e passantes se alarmavam ao escutar
gritos de dor, pedidos de socorro.

Três figuras despontaram por detrás do barracão no qual se
acumulava o cacau provindo da Fazenda Santa Mariana e repousavam os tropeiros que o traziam e os jagunços que o guardavam.

Coroca e Castor puderam distinguir, à luz da lua cheia, a mulher ainda jovem, mulata escura, de basta cabeleira crespa, femeaço vistoso se não estivesse tão desarvorada: com a mão tapava um lado do rosto, gemia sem parar.

Acompanhavam-na um homem magro, sarará, já de certa idade, e uma velha. Coroca se adiantara ao encontro dos caminhantes: nada de sério, apenas uma doente a caminho de Itabuna, em busca de atendimento.

 Não devia encontrar-se em estado grave pois vinha andando com seus próprios pés e não transportada aos ombros numa rede, moribunda. Ouviu-se o riso de mofa da rapariga:

 - Tanto escarcéu por um dente? Tirar a gente do sono por uma besteira dessa? Um descaro.

Aflita e raivosa, a velha enfrentou Coroca:

 - Quisera ver se fosse com vosmicê, sia dona. Vai pra três dias que a pobre só faz sofrer, não tem descanso, começou anteontem e não parou de doer, cada vez mais pior, não dá sossego pra infeliz.

Elevara a voz para ser ouvida pelos curiosos que afluíam:

 - Nós tamos indo para Taquaras, pro mode ver se encontra por lá um filho de Deus que arranque o dente dela. Se não encontrar, a gente continua pra Itabuna. É minha filha, mulher dele. Apontou para o homem que se mantinha calado.

A velha despejava o saco, com certeza tivera de repetir a explicação caminho afora. Continuou: - Acho que foi praga que rogaram nela. A tal da Aparecida que...

Não conseguiu contar o caso, a voz brusca do homem cortou-lhe a palavra:

 - Basta! Vosmicê fala demais.

Trazia punhal na cintura e repetição pendurada no ombro.

Mesmo sem o aviso dado pela velha, logo perceberam que a criatura era propriedade dele pela preocupação e pelo cuidado reflectidos no rosto carrancudo que se enternecia ao fitar a choramingas.

Tomou a frente de Castor quando o negro se aproximou
risonho e se ofereceu:

 - Se tá procurando quem arranque seu dente, dona, não precisa ir até Taquaras. Aqui mesmo se pode dar um jeito. Venha mais eu.

O homem quis saber:

-  Ir pra onde?

- Pro armazém do coronel Robustiano, pra eu espiar a condição do dente.

— E tu assunta de dor de dente? — Mais do que a pergunta,
o tom da voz continha suspeita e advertência.

Castor não vacilou, abriu-se num sorriso:

- Assunto, sim senhor. Vambora, dona.

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