O Barão era deveras autoridade em raças... |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 30
Em sendo assim, uma esposa devotada deve estar apta a cumprir o seu dever, solidária com o destino do marido. Um dia, quando dissertavam, sobre a pureza e a beleza das raças e
-
Repare no torso, nas pernas, nos bíceps, na cabeça, ma chère: um belo animal.
Exemplar perfeito. Observe os dentes.
Reparou, obediente e interessada.
Demorou os olhos molhados no exemplar perfeito, no belo animal. Observou os
dentes brancos, o sorriso vadio. Malheur! Uma faixa de pano escondia-lhe a
primazia.
O Barão era deveras autoridade em raças,
herdara a competência do pai, perito na escolha e compra de cavalos e escravos.
Mas Marie-Claude aprendera com as
freiras do Sacré Coeur que os negros também têm alma, adqui rem-na
com o baptismo.
Alma colonial, de segunda classe, mas
suficiente para distingui-los dos animais: a bondade de Deus é infinita,
explicava Sóror Dominique dissertando sobre o heroísmo dos missionários no
coração da África selvagem.
- Mais, pas du tout, mon ami, ce n’est pas un
animal. C’est un homme, il possêde un’ãme immortelle
que te missionaire tal a donné avec le baptême.
— Un homme? — O Barão desatou a rir.
Quando o Senhor de Itauaçu ria em
francês, posando de aristocrata culto e irónico a se divertir com a tolice
humana, tornava-se intolerável por afectado e arrogante.
Um seu xará, Adroaldo Ribeiro da Costa,
bacharel e literato de Santo Amaro, ao ouvi-lo rinchavelhar massacrando sem
piedade a língua de Beaudelaire, mestre bem-amado, passara a designá-lo por
Monsieur le Franciú para gáudio dos ouvintes e pelas costas do Barão: o poeta
vivia na lua mas não a ponto de se expor às iras do manda-chuva.
- Não me leveis a mal, ma chêre, mas
vossa afirmação é uma estultice. Onde já se viu dizer que um negro é um homem?
Um belo animal, repito, com certeza
menos inteligente do que
vosso cavalo Diamante Azul.
-
Três beau, oui. Un
homme três beau, un prince. Un prince
d’ébêne!
-
Príncipe de Ébano! Vous êtes drôle, Madame. Deixai-me rir.
- E rinchavelhou superior e
absoluto.
A troça grosseira, a empáfia, le
ricanement sardonique do Barão acabaram de convencê-la: destino é
destino, traçado no céu.
A Baronesa adoptou Castor e não se
arrependeu. Se o senhor de engenho se deu conta do interesse que ditou a
mudança de estado do aprendiz de ferreiro, agora a lhe servir à mesa, fez vista
grossa, ele próprio ocupado em derrubar cabrochas do banguê, delas usando e
abusando como se ainda perdurasse a escravidão.
Senhor feudal, de muitas comeu os três
vinténs mas somente com Rufina manteve relacionamento
prolongado; na cozinha da casa-grande ela se dava ares de
sinhá, comborça – amásia de homem casado - coberta de ouro e prata - balangandãs,
pulseiras, brincos, colares, trancelins, além da cruz de madrepérola que lhe
dera o reverendíssimo Cónego.
A
generosidade do Barão não conhecia limites: como se não bastassem os regalos valiosos,
teimava em instruir a mulata na prática de refinamentos das estranjas, sem
sucesso pois ela preferia a brincadeira ao natural: a gula insaciável
dispensava molhos e temperos.
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