Taí seu dente, moça. |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 37
Aproveitando um momento em que o negro retirara a torquês para afastar a gengiva com os dedos, a mulher deu um safanão e levantou-se de um salto.
Sem sequer olhar para ela, Manuel
Bernardes disse:
-
Tu qui s, agora tem de aguentar, o
moço avisou. Vai, sente e não se levante mais.
Era uma ordem mas transmitida com
brandura, a voz não se elevara, jamais a elevava ao falar com Clorinda. O
sarará estava embeiçado, reflectiu Bernarda e se preocupou por Tição: se o
negro estragasse a boca da mulher e não tirasse o dente, iriam presenciar mais
uma desgraça.
Olhou em derredor e leu na cara dos demais a
mesma agonia, ai, minha Virgem da Capistola!
A mulher se aqui etou
e Tição conseguiu finalmente prender o molar entre as garras da torquês.
Fincou os pés no chão, deu um arrancão com violência mas a padecente se moveu,
o dente resistiu, não veio com a ferramenta.
O
negro, paciente, recomeçou a melindrosa tarefa, minutos infindáveis. Os
assistentes se comprimiam em
torno. Alguém , talvez Bernarda, deixou escapar um suspiro. A
voz, agora alterada e dura de Manuel Bernardes, exigiu:
-
Acabe com isso de vez!
Castor sorriu à luz do fifó e
prosseguiu, tranqui lo, até sentir o dente bem agarrado pelas tenazes que o
seguravam na raiz. Pediu ajuda de dois homens para
imobilizar Clorinda, impedindo-a de se mexer. Antes que alguém se apresentasse,
Manuel Bernardes decidiu:
-
Não precisa ninguém, basta com eu.
Encostou a espingarda nos sacos de
cacau, cravou as duas mãos no cangote da mulher. Então o negro firmou o corpo,
puxou com toda a força: a força de um ferreiro habituado a aplicar ferraduras em
animais, a malhar o ferro em brasa.
A
torquês saiu suja de sangue, Castor a exibiu com o queixal entre as tenazes, um
dente disforme que dava gosto ver.
- Taí seu dente, moça.
Clorinda cuspiu um cuspo grosso, limpou
com a mão a baba vermelha. Pegou a garrafa de cachaça,
bebeu o que sobrava como se bebesse água, depois agradeceu:
-
Deus lhe pague, seu moço. Desculpe os
maus modos.
Manuel Bernardes colocou a espingarda no
ombro. Aproximou-se:
-
Toque lá. — A mão estendida: — Me disculpe o mau juízo, foi por lhe ver tão moderno. Serviço
danado de penoso.
- Quanto devo?
-
Não deve nada. Não vivo de arrancar dente.
Surgira, ninguém sabe de onde, outra
garrafa de cachaça, passava de mão em mão, chegou a eles.
Manuel Bernardes a suspendeu pelo gargalo, engoliu dois goles calibrados,
enxugou a boca na manga do paletó; riu pela primeira vez ao entregar a garrafa ao
negro:
-
Não sou crente, não, Deus me livre e guarde, mas não tava com vontade de beber
com vosmicê naquela hora.
Despedia-se: -
Se um dia precisar de mim, sabe onde moro. Ouviu-se um som repinicado, nascia da
sanfona de Pedro Cigano, um coco das Alagoas que bulia
com o sangue e os pés do povo. A velha assanhou-se e saiu no passo ligeiro e
miúdo da dança: velha levada da breca na cachaça e no forrobodó.
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