terça-feira, agosto 26, 2014

Taí seu dente, moça.
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 37

















Aproveitando um momento em que o negro retirara a torquês para afastar a gengiva com os dedos, a mulher deu um safanão e levantou-se de um salto.

Sem sequer olhar para ela, Manuel Bernardes disse:

 - Tu quis, agora tem de aguentar, o moço avisou. Vai, sente e não se levante mais.

Era uma ordem mas transmitida com brandura, a voz não se elevara, jamais a elevava ao falar com Clorinda. O sarará estava embeiçado, reflectiu Bernarda e se preocupou por Tição: se o negro estragasse a boca da mulher e não tirasse o dente, iriam presenciar mais uma desgraça.

 Olhou em derredor e leu na cara dos demais a mesma agonia, ai, minha Virgem da Capistola!

A mulher se aquietou e Tição conseguiu finalmente prender o molar entre as garras da torquês. Fincou os pés no chão, deu um arrancão com violência mas a padecente se moveu, o dente resistiu, não veio com a ferramenta.

 O negro, paciente, recomeçou a melindrosa tarefa, minutos infindáveis. Os assistentes se comprimiam em torno. Alguém, talvez Bernarda, deixou escapar um suspiro. A voz, agora alterada e dura de Manuel Bernardes, exigiu:

 - Acabe com isso de vez!

Castor sorriu à luz do fifó e prosseguiu, tranquilo, até sentir o dente bem agarrado pelas tenazes que o seguravam na raiz. Pediu ajuda de dois homens para imobilizar Clorinda, impedindo-a de se mexer. Antes que alguém se apresentasse, Manuel Bernardes decidiu:

 - Não precisa ninguém, basta com eu.

Encostou a espingarda nos sacos de cacau, cravou as duas mãos no cangote da mulher. Então o negro firmou o corpo, puxou com toda a força: a força de um ferreiro habituado a aplicar ferraduras em animais, a malhar o ferro em brasa.

 A torquês saiu suja de sangue, Castor a exibiu com o queixal entre as tenazes, um dente disforme que dava gosto ver.

- Taí seu dente, moça.

Clorinda cuspiu um cuspo grosso, limpou com a mão a baba vermelha. Pegou a garrafa de cachaça, bebeu o que sobrava como se bebesse água, depois agradeceu:

 -  Deus lhe pague, seu moço. Desculpe os maus modos.

Manuel Bernardes colocou a espingarda no ombro. Aproximou-se:

 - Toque lá. — A mão estendida: — Me disculpe o mau juízo, foi por lhe ver tão moderno. Serviço danado de penoso.

 - Quanto devo?

 - Não deve nada. Não vivo de arrancar dente.

Surgira, ninguém sabe de onde, outra garrafa de cachaça, passava de mão em mão, chegou a eles. Manuel Bernardes a suspendeu pelo gargalo, engoliu dois goles calibrados, enxugou a boca na manga do paletó; riu pela primeira vez ao entregar a garrafa ao negro:

 - Não sou crente, não, Deus me livre e guarde, mas não tava com vontade de beber com vosmicê naquela hora.

Despedia-se: - Se um dia precisar de mim, sabe onde moro. Ouviu-se um som repinicado, nascia da sanfona de Pedro Cigano, um coco das Alagoas que bulia com o sangue e os pés do povo. A velha assanhou-se e saiu no passo ligeiro e miúdo da dança: velha levada da breca na cachaça e no forrobodó.

Site Meter