Tu assunta mesmo? |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 35
A um sinal do homem, andaram para o depósito de cacau, os Jagunços abriram passagem para o grupo, igualmente interessados nas peripécias da ocorrência.
A
assistência crescera com a presença de Pedro Cigano, de Bernarda, de
Lupiscínio, de Bastião da Rosa, de trabalhadores e tropeiros. Trocavam
cochichos, olhavam de soslaio para o homem armado, o carpina fez um gesto,
Bastião da Rosa respondeu com outro, confirmando.
Haviam reconhecido o macambúzio: envelhecera e
estava enxodozado, o que o tornava ainda mais perigoso. Lupiscínio sentiu um
arrepio na espinha, um frio nos qui bas:
tudo podia acontecer.
Tição pediu que a mulher se sentasse em
cima de uns sacos de cacau e abrisse a boca mas ela não se moveu, continuou gemendo
à espera da decisão do sarará que insistiu na pergunta:
-
Tu assunta mesmo?
O negro riu novamente, brincalhão e bem
falante:
- Já disse a vossa senhoria.
-
Não sou senhoria, nem sua nem de ninguém. Sou Manuel
Bernardes, de Itacaré, e não aprecio
zombaria. Vou mandar ela sentar mas o risco é seu. Abrandou a voz ao dirigir-se
à mulher:
-
Vai, senta, Clorinda, abre a boca, mostra o dente ao moço.
Lupiscínio e Bastião da Rosa tinham-no
identificado antes
que ele proclamasse o nome façanhudo em
aviso e ameaça.
Clavinoteiro a serviço dos Badaró
durante as lutas travadas com o coronel Basílio de Oliveira, no cerco final
quando a munição terminou e ele se viu sozinho, com uma bala no ombro, lavado em
sangue, mesmo assim não se entregou, não se rendeu; armado com o punhal, ainda
feriu três.
Preso e amarrado, iam acabar com ele na
malvadeza mas o coronel Basílio não consentiu: macho daquela espécie não se
mata a sangue-frio.
Mandou que o soltassem e lhe estendeu a mão.
Manuel Bernardes passou a viver em Itacaré onde plantava milho e mandioca e
possuía uma casa de farinha. Fama capaz de rivalizar com a dele, só mesmo a do
capitão Natário da Fonseca.
Naquela hora todos temeram pela vida do
negro Tição, rapaz
trabalhador e presepeiro, muito
estimado. Ferrador de mão segura e forte ao bater o cravo, ferreiro de dedos
ágeis e engenhosos no trato dos metais.
Defeito sério, aparentava possuir apenas um:
era abelhudo a mais não poder, metia o bedelho em tudo, tudo querendo resolver,
o belzebu. Ia pagar caro o atrevimento, quem mandara se intrometer? Decerto não
tinha competência nem traquejo, não passava de um negro maneiro e folgazão.
Adolescente, intrometera-se com as
girondas do Senhor Barão, a legítima e a preferida. Por vales e montes,
canaviais e bagaceiras, pelo campo verde e pelo céu azul cavalgara as duas
montarias exclusivas do senhor de engenho, arriscando a cabeça e os ovos.
Demonstrara traquejo e competência, perdera o
medo de uma vez por todas.
-
Muito prazer, seu Manuel. Meu nome é Castor Abduim, me chamam de Tição por ser
ferreiro. Já tive outros apelidos, posso lhe contar se um dia vosmicê qui ser ouvir. Agora, vamos aliviar a sua dona. No
mundo não há coisa tão ruim que se compare a dor de dente, é o que ouço dizer e
repetir.
Eu nunca tive, graças a Deus. Riu de um
lado a outro da boca, exibindo os dentes brancos.
2
-
É em baixo ou em cima? De que lado, dona?
-
No de baixo. Nesse aqui .
Os assistentes se aproximaram, todos
queriam ver, os olhares iam do clavinoteiro ao negro, da mulher à velha. Tição
pediu a Coroca que segurasse o fifó na altura do rosto de Clorinda.
Mal conseguia enxergar à luz vacilante e
fumacenta do candeeiro; foi tenteando com os dedos no lado direito até que a
padecente gemeu mais fone e ele sentiu o buraco da cárie no molar.
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