E tu assunta de dôr de dente? |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 34
Os
renitentes jogadores de ronda suspenderam os lances, tropeiros e trabalhadores
despertaram, puseram-se de pé, saíram a ver o que estava acontecendo. Ao lado
de Coroca na cama de campanha, o negro Castor semi-ergueu-se atento.
-
Até parece que estão matando alguém - Comentou a mulher-dama.
-
Vou ver. — Disse o negro, enfiando as calças: - Já volto.
-
Também vou. - Coroca apurou o ouvido: — É choro de mulher.
Perdurava em torno de Tocaia Grande uma
legenda de perigo
e violência — não ganhara aquele nome
por acaso — se bem ultimamente não se tivesse notícia de bafafá de vulto
sucedido por ali. Vez por outra um tiro, uma facada, brigas em torno dos
baralhos sebosos. Dias antes, dois cabras quase se acabaram no punhal para
decidir qual deles ia passar a noite com Bernarda; correu sangue mas não houve
morte — incidente de pouca monta.
Ainda assim, moradores e passantes se
alarmavam ao escutar
gritos de dor, pedidos de socorro.
Três figuras despontaram por detrás do
barracão no qual se
acumulava o cacau provindo da Fazenda
Santa Mariana e repousavam os tropeiros que o traziam e os jagunços que o
guardavam.
Coroca e Castor puderam distinguir, à
luz da lua cheia, a mulher ainda jovem, mulata escura, de basta cabeleira
crespa, femeaço vistoso se não estivesse tão desarvorada: com a mão tapava um lado
do rosto, gemia sem parar.
Acompanhavam-na um homem magro, sarará,
já de certa idade, e uma velha. Coroca se adiantara ao encontro dos
caminhantes: nada de sério, apenas uma doente a caminho de Itabuna, em busca de
atendimento.
Não devia encontrar-se em estado grave pois
vinha andando com seus próprios pés e não transportada aos ombros numa rede, moribunda.
Ouviu-se o riso de mofa da rapariga:
-
Tanto escarcéu por um dente? Tirar a gente do sono por uma besteira dessa? Um descaro.
Aflita e raivosa, a velha enfrentou
Coroca:
-
Quisera ver se fosse com vosmicê, sia dona. Vai pra três dias que a pobre só faz sofrer, não tem
descanso, começou anteontem e não parou de doer, cada vez mais pior, não dá
sossego pra infeliz.
Elevara a voz para ser ouvida pelos
curiosos que afluíam:
-
Nós tamos indo para Taquaras, pro mode ver se encontra por lá um filho de Deus que arranque o
dente dela. Se não encontrar, a gente continua pra Itabuna. É minha filha,
mulher dele. Apontou para o homem que se
mantinha calado.
A velha despejava o saco, com certeza
tivera de repetir a explicação caminho afora. Continuou: - Acho que foi praga
que rogaram nela. A tal da Aparecida que...
Não conseguiu contar o caso, a voz
brusca do homem cortou-lhe a palavra:
-
Basta! Vosmicê fala demais.
Trazia punhal na cintura e repetição
pendurada no ombro.
Mesmo sem o aviso dado pela velha, logo
perceberam que a criatura era propriedade dele pela preocupação e pelo cuidado
reflectidos no rosto carrancudo que se enternecia ao fitar a choramingas.
Tomou a frente de Castor quando o negro
se aproximou
risonho e se ofereceu:
-
Se tá procurando quem arranque seu dente, dona, não precisa ir até Taquaras. Aqui mesmo se pode dar um jeito. Venha mais eu.
O homem qui s
saber:
- Ir pra onde?
- Pro armazém do coronel Robustiano, pra
eu espiar a condição do dente.
— E tu assunta de dor de dente? — Mais
do que a pergunta,
o tom da voz continha suspeita e
advertência.
Castor não vacilou, abriu-se num
sorriso:
- Assunto, sim senhor. Vambora, dona.
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