Vou mandar arrancar teus ovos, Príncipe de Merda |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 32
O que fez o Barão erguer o braço com o chicote e abrir lanho de sangue nas costas nuas de Rufina, foi a indignação provocada pela atitude da cabrocha: a ingratidão, a falta de respeito.
Sentiu-se agredido naqui lo que lhe era mais sagrado, o sentimento de
propriedade. Gastara conhecimentos e dinheiro com a mal-agradecida - concedera-lhe
a honra de desflorá-la e de com ela fornicar assiduamente; buscara instruí-la a
respeito de refinadas práticas sexuais, que a erva ruim, estulta, se recusava a
admitir; dera-lhe estatuto de concubina elevando-a da condição de cria da casa,
de animal doméstico; além das prendas de vestir e de enfeitar, tantas.
A
traição da mulata doeu-lhe fundo: não se tratava de simples capricho momentâneo
de esposa entediada, risível leviandade, pecado venial; tratava-se de pesado
agravo, afronta vil, humilhante escárnio ao senhor e amo, culpa imperdoável, pecado
mortal.
Tolerar tal ultraje significaria abalar
os fundamentos da moral e da sociedade.
Assim, quando, ao regressar da cavalgada
matinal, surpreendeu nas dependências da antiga senzala Rufina sendo possuída por
Castor à maneira elementar dos ignaros, a mulata por baixo, o negro por cima, o
Barão enfureceu-se; não era para menos, convenhamos.
O zumbi escafedeu-se mas voltou ao
escutar, quase em seguida, o uivo de Rufina. Desvairado, o Barão exemplava-a com
denodo. Castor arrancou-lhe o chicote das mãos, partiu-o em dois pedaços e
atirou-o longe. Em troca recebeu o tapa, o insulto e a ameaça.
-
Vou mandar arrancar teus ovos, Príncipe de Merda, negro imundo.
A face ardendo, a vista turva, o Príncipe
fosse-lá-do-que-fosse
- de ébano ou de merda — com a mão
esquerda segurou o Barão pela jaqueta de montaria, com a
direita encheu-lhe a cara de porrada.
Só parou de bater quando acudiu gente, vinda
da casa grande e do bangüê, num alvoroço que tinha algo
de festivo: não é todos os dias que se assiste ao espectáculo do esbofeteamento
de um senhor de engenho.
Cabeça e colhões postos a prémio, Castor
ganhou o mundo.
Houvesse demorado, nem sequer a senhora
Baronesa teria podido salvá-lo, se qui sesse
interferir a seu favor. Não queria: afetada pela traição do negro - Aie!
Madeleine, le plus beau noir du monde, le plus vilain da homnes! - Madama
adoecera, guardara o leito em dias melancólicos, mas reagira e preparava-se
para uma viagem à Europa em companhia do Barão, numa segunda lua-de-mel, bem
merecida.
O fugitivo chegou à capital após descer
o rio Paraguaçu num saveiro carregado de açúcar e cachaça.
Mãe Gertrudes de Oxum, que o hospedou, considerava a cidade da Bahia
demasiadamente próxima de Santo Amaro para oferecer garantia de vida a um negro
acusado de tamanhos crimes: atrevera-se a levantar os olhos para a íntegra e
virtuosa esposa do amo; repelido, pretendera violentar pobre e indefesa mucama;
impedido de levar avante o torpe intento, tentara assassinar o senhor de
engenho.
Beleguins o procuravam com ordem de prisão,
capoeiras vindos do Recôncavo vasculhavam as ruas com ordem de matá-lo.
Escondido no porão de um veleiro de dois
mastros viajou da Bahia para Ilhéus. No terreiro onde
zelava pelos orixás, num coqueiral entre Pontal e Olivença, pai Arolu o acolheu
e o recomendou ao coronel Robustiano de Araújo, cuja riqueza não o impedia de
dar comida aos encantados e de receber a bênção e os conselhos do babalorixá.
No eldorado do cacau pai Arolu tinha tanto ou mais
prestígio do que o Senhor Bispo: chegara primeiro e possuía indiscutíveis
poderes sobre o sol e a chuva.
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