quarta-feira, agosto 20, 2014

Vou mandar arrancar teus ovos, Príncipe de Merda
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 32




















O que fez o Barão erguer o braço com o chicote e abrir lanho de sangue nas costas nuas de Rufina, foi a indignação provocada pela atitude da cabrocha: a ingratidão, a falta de respeito.

Sentiu-se agredido naquilo que lhe era mais sagrado, o sentimento de propriedade. Gastara conhecimentos e dinheiro com a mal-agradecida - concedera-lhe a honra de desflorá-la e de com ela fornicar assiduamente; buscara instruí-la a respeito de refinadas práticas sexuais, que a erva ruim, estulta, se recusava a admitir; dera-lhe estatuto de concubina elevando-a da condição de cria da casa, de animal doméstico; além das prendas de vestir e de enfeitar, tantas.

 A traição da mulata doeu-lhe fundo: não se tratava de simples capricho momentâneo de esposa entediada, risível leviandade, pecado venial; tratava-se de pesado agravo, afronta vil, humilhante escárnio ao senhor e amo, culpa imperdoável, pecado mortal.

Tolerar tal ultraje significaria abalar os fundamentos da moral e da sociedade.

Assim, quando, ao regressar da cavalgada matinal, surpreendeu nas dependências da antiga senzala Rufina sendo possuída por Castor à maneira elementar dos ignaros, a mulata por baixo, o negro por cima, o Barão enfureceu-se; não era para menos, convenhamos.

O zumbi escafedeu-se mas voltou ao escutar, quase em seguida, o uivo de Rufina. Desvairado, o Barão exemplava-a com denodo. Castor arrancou-lhe o chicote das mãos, partiu-o em dois pedaços e atirou-o longe. Em troca recebeu o tapa, o insulto e a ameaça.

 - Vou mandar arrancar teus ovos, Príncipe de Merda, negro imundo.

A face ardendo, a vista turva, o Príncipe fosse-lá-do-que-fosse
- de ébano ou de merda — com a mão esquerda segurou o Barão pela jaqueta de montaria, com a direita encheu-lhe a cara de porrada.

 Só parou de bater quando acudiu gente, vinda da casa grande e do bangüê, num alvoroço que tinha algo de festivo: não é todos os dias que se assiste ao espectáculo do esbofeteamento de um senhor de engenho.

Cabeça e colhões postos a prémio, Castor ganhou o mundo.

Houvesse demorado, nem sequer a senhora Baronesa teria podido salvá-lo, se quisesse interferir a seu favor. Não queria: afetada pela traição do negro - Aie! Madeleine, le plus beau noir du monde, le plus vilain da homnes! - Madama adoecera, guardara o leito em dias melancólicos, mas reagira e preparava-se para uma viagem à Europa em companhia do Barão, numa segunda lua-de-mel, bem merecida.

O fugitivo chegou à capital após descer o rio Paraguaçu num saveiro carregado de açúcar e cachaça. Mãe Gertrudes de Oxum, que o hospedou, considerava a cidade da Bahia demasiadamente próxima de Santo Amaro para oferecer garantia de vida a um negro acusado de tamanhos crimes: atrevera-se a levantar os olhos para a íntegra e virtuosa esposa do amo; repelido, pretendera violentar pobre e indefesa mucama; impedido de levar avante o torpe intento, tentara assassinar o senhor de engenho.

Beleguins o procuravam com ordem de prisão, capoeiras vindos do Recôncavo vasculhavam as ruas com ordem de matá-lo.

Escondido no porão de um veleiro de dois mastros viajou da Bahia para Ilhéus. No terreiro onde zelava pelos orixás, num coqueiral entre Pontal e Olivença, pai Arolu o acolheu e o recomendou ao coronel Robustiano de Araújo, cuja riqueza não o impedia de dar comida aos encantados e de receber a bênção e os conselhos do babalorixá.

 No eldorado do cacau pai Arolu tinha tanto ou mais prestígio do que o Senhor Bispo: chegara primeiro e possuía indiscutíveis poderes sobre o sol e a chuva.

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