terça-feira, agosto 19, 2014

Castor Abduim  ornou de potentes e graciosos chifres...
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 31



















Para encurtar o conto, pois o enredo detalhado da cornice dupla ou du double cucuage do Senhor de Itauaçu revela-se longo em demasia para o espaço que lhe cabe na história de Tocaia Grande, registe-se de logo aquilo que em pouco tempo se tornou de domínio público: combatendo em duas frentes de batalha, na de Madama toda em oiro, na de Rufina toda em cobre, com a força e a inocência dos dezanove anos por cumprir, Castor Abduim ornou de potentes e graciosos chifres a aristocrática testa do Barão.

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O mimoso e perfumado ventre de Madame la Baronne
contraía-se guloso, orvalhava-se quando ela, na solidão do
boudouir rompida pelos roncos do Barão, pensava no Príncipe de Ébano e o detalhava com apetite: os lábios grossos, os dentes de morder, a língua áspera, o peito largo, as pernas fortes e o resto, ai!

Perdão pela má palavra que evidentemente não pertence ao
vocabulário de Madama. Jamais ela diria resto, jamais usaria termo assim mesquinho e indelicado para nomear aquela ostentação única e primaz, a cuja simples vista se obliterava o cérebro de Rufina e se humedeciam as partes de Madama.

Partes: ainda uma palavra infeliz, ordinária mas corriqueira entre o povo da cozinha do qual ela provém e de cuja alcovitice Deus nos livre e guarde.

Apesar de ter a sensibilidade à flor da pele, a Baronesa mantinha-se lúcida mesmo nos momentos culminantes, ciosa da  lógica e da exactidão gaulesas.

Com justa pertinência designava a formosa e notável potestade conforme a ocasião e a serventia: com as duas mãos empunhava le gran mât, fartava-se a mamar te biberon, abria-se para receber pela frente e por detrás l’axe du
monde.

Agoniada com o rapé e os requintes do Barão, desdenhando
os bálsamos do Cónego compassivo e magnânimo, Rufina buscou consolo e provimento no mesmo peito amplo em que a meiga Baronesa repousava os bucles da loira cabeleira: o peito de Castor Abduim da Assunção, Tição Aceso, Príncipe de Ébano, criado de luxo, ex-aprendiz de marechal-ferrant na forja de seu tio Cristóvão Abduim, ambos de cabeça feita por Xangô.

Nos canaviais, no bangüê, nos engenhos do Recôncavo, nas
cidades de São Félix, Cachoeira, Muritiba e Santo Amaro, em
Maragogipe e até na capital, comentavam o caso, diziam que a
confraria de São Cornélio, o santo padroeiro dos galhudos, tinha novo e ilustre presidente, o Barão de Itauaçu, Monsieur le Franciú, corno ao quadrado, corníssimo, cornissíssimo, rei da mansidão.

“Un gentil cocu” para usar definição que soava simpática e amical na boca da Baronesa sua esposa. Ah! - a boca da Baronesa só se comparava ao xibiu de Rufina, duas obras primas, duas competências, opinião compartilhada pelo Barão
Adroaldo Muniz Saraiva de Albuquerque, fidalgo e senhor de
engenho, e pelo negro Castor, nascido servo nas plantações de
cana. Comprova-se assim, mais uma vez, que a verdade se impõe ao sábio e ao iletrado, ao rico e ao pobre, à nobreza e à ralé.

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Para que não se faça mau juízo de Adroaldo Muniz Saraiva
de Albuquerque, Barão de Itauaçu, e se não lhe atribua a pecha de senhor de engenho atrasadão, sustentáculo de vulgares preconceitos, indigno de esposa européia, civilizada, deve-se dizer que o incidente com Castor, motivo da agressão e da fuga, não teve como causa imediata a intimidade estabelecida entre a Baronesa e o ajudante de ferreiro.

Ao que tudo indica, os chifres provindos dos bucólicos passatempos de Madama não faziam mossa ao Barão. Ele os carregava com dignidade e nonchalance num belo exemplo aos bárbaros senhores do açúcar de justiça sumária: matavam as sinhás e as sinhazinhas que se atreviam com os negros; aos negros mandavam capar antes de matá-los.

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