Castor Abduim ornou de potentes e graciosos chifres... |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 31
Para encurtar o conto, pois o enredo detalhado da cornice dupla ou du double cucuage do Senhor de Itauaçu revela-se longo em demasia para o espaço que lhe cabe na história de Tocaia Grande, registe-se de logo a
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O mimoso e perfumado ventre de Madame la Baronne
contraía-se guloso, orvalhava-se quando
ela, na solidão do
boudouir rompida pelos roncos do Barão,
pensava no Príncipe de Ébano e o detalhava com apetite: os lábios grossos, os
dentes de morder, a língua áspera, o peito largo, as pernas fortes e o resto,
ai!
Perdão pela má palavra que evidentemente
não pertence ao
vocabulário de Madama. Jamais ela diria
resto, jamais usaria termo assim mesqui nho
e indelicado para nomear aquela ostentação única e primaz, a cuja simples vista
se obliterava o cérebro de Rufina e se humedeciam as partes de Madama.
Partes: ainda uma palavra infeliz,
ordinária mas corriqueira entre o povo da cozinha do qual ela provém e de cuja
alcovitice Deus nos livre e guarde.
Apesar de ter a sensibilidade à flor da
pele, a Baronesa mantinha-se lúcida mesmo nos momentos culminantes, ciosa da lógica e da exactidão gaulesas.
Com justa pertinência designava a formosa
e notável potestade conforme a ocasião e a serventia: com as duas mãos
empunhava le gran mât, fartava-se a mamar te biberon, abria-se para receber
pela frente e por detrás l’axe du
monde.
Agoniada com o rapé e os requi ntes do Barão, desdenhando
os bálsamos do Cónego compassivo e
magnânimo, Rufina buscou consolo e provimento no mesmo peito amplo em que a
meiga Baronesa repousava os bucles da loira cabeleira: o peito de Castor Abduim
da Assunção, Tição Aceso, Príncipe de Ébano, criado de luxo, ex-aprendiz de
marechal-ferrant na forja de seu tio Cristóvão Abduim, ambos de cabeça feita
por Xangô.
Nos canaviais, no bangüê, nos engenhos
do Recôncavo, nas
cidades de São Félix, Cachoeira,
Muritiba e Santo Amaro, em
Maragogipe e até na capital, comentavam
o caso, diziam que a
confraria de São Cornélio, o santo
padroeiro dos galhudos, tinha novo e ilustre presidente, o Barão de Itauaçu,
Monsieur le Franciú, corno ao quadrado, corníssimo, cornissíssimo, rei da mansidão.
“Un gentil cocu” para usar definição que
soava simpática e amical na boca da Baronesa sua esposa. Ah! - a boca da
Baronesa só se comparava ao xibiu de Rufina, duas obras primas, duas
competências, opinião compartilhada pelo Barão
Adroaldo Muniz Saraiva de Albuquerque,
fidalgo e senhor de
engenho, e pelo negro Castor, nascido
servo nas plantações de
cana. Comprova-se assim, mais uma vez,
que a verdade se impõe ao sábio e ao iletrado, ao rico e ao pobre, à nobreza e
à ralé.
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Para que não se faça mau juízo de
Adroaldo Muniz Saraiva
de Albuquerque, Barão de Itauaçu, e se
não lhe atribua a pecha de senhor de engenho atrasadão, sustentáculo de
vulgares preconceitos, indigno de esposa européia, civilizada, deve-se dizer
que o incidente com Castor, motivo da agressão e da fuga, não teve como causa
imediata a intimidade estabelecida entre a Baronesa e o ajudante de ferreiro.
Ao que tudo indica, os chifres provindos
dos bucólicos passatempos de Madama não faziam mossa ao Barão. Ele os carregava
com dignidade e nonchalance num belo exemplo aos bárbaros senhores do açúcar de
justiça sumária: matavam as sinhás e as sinhazinhas que se atreviam com os
negros; aos negros mandavam capar antes de matá-los.
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