sábado, setembro 06, 2014

Até os índios, nação mais perseguida, tem chão onde se deitar
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)


Episódio Nº 45



















O Capitão desmontou a tempo de impedir que o turco concluísse o negócio da compra do burro, mas dos sucessos da véspera soube apenas por ouvir dizer.

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O que então se dizia e repetia na costa e no sertão, todos sabem: cigano é outra nação, duvidosa. Não se confunde com a raça grapiúna nem com nenhuma conhecida, não se mistura com sergipano ou turco, português ou curiboca, com outra grei seja qual for.

Quem já compareceu a casamento de cigano com gente do
país? Está por acontecer. Nação à parte, casta de bruxos e gatunos, os ciganos vivem de enganos e embustes, de trapaças.

No lombo dos cavalos roubados, os homens assemelham-se a fidalgos, condes e barões, duques e marqueses. Reclinadas em colchões encardidos nas carroças onde vivem; vestidas de andrajos floreados, largas saias de babado; recobertas de pulseiras e colares, as mulheres passariam por princesas e rainhas não fossem a buena-dicha, a língua de trapo e os pés descalços.

 Levados pelas aparências há quem diga e até escreva que os ciganos são o resto da corte real da Babilónia errante mundo afora, cumprindo sina.

Fosse como fosse, convinha guardar distância, usar de cautela no trato de negócios, esconder os bens mais preciosos. Um povo sem chão, onde já se viu?

 Ninguém pode confiar. Até os índios, nação mais perseguida, têm chão onde pousar, se bem pouco já lhes restasse por aquelas bandas nas quais, outrora, muito outrora, as tribos pataxós ocupavam extensas áreas.

Senhores das matas e dos rios, os índios pescavam e caçavam, dançavam e guerreavam. Foram mortos em sua grande maioria, afinal não tinham qualquer utilidade para a lavoura do cacau. Arredios, os sobreviventes buscavam manter-se em contados redutos mas o menor pretexto era razão de sobra para liquidá-los. Ainda representavam algum perigo, diminuto porém.

Fazia tempo que se deixara de ouvir notícia de povoação vítima do ataque de índios. Acontecera, sim, mas em data remota, antes de haver Tocaia Grande.

Em Tocaia Grande, ponto perdido no inexistente mapa da região do rio das Cobras, sucediam-se as raparigas: andarilhas como os ciganos, não esquentavam lugar; fretavam-se com os tropeiros e os passantes: havia dinheiro a ganhar e risco a correr nas noites turbulentas.

O galpão erguido no descampado atraía putas, alugados e mateiros. Os alugados vinham das roças que começavam a ser plantadas nas clareiras abertas com o desbaste da floresta pelos mateiros: primeiro o machado e o fogo, logo seguidos pela pá e a enxada.

Algumas raras quengas ali se fixavam, levantavam uma palhoça; certamente motivos sérios as decidiram a viver em lugar tão de somenos.

Perseguido chão de índios, misérrimo chão de raparigas.

Chão de ciganos não existe: é o lombo dos cavalos, o estrado das carroças, a sola dos pés. Ninguém pode confiar. Mas quem não se encanta com um par de brincos cintilando ao sol, com uma jóia verdadeira ou falsa, quem não deseja saber a ventura que lhe reserva o dia de amanhã?

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Para que tudo fique claro ou se torne ainda mais obscuro no relato da passagem dos ciganos por Tocaia Grande, faz-se necessária uma referência mesmo breve ao passado de Guta, já então perfumada com o doce aroma de tabaco.

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