Quem sabe, Bernarda mostraria um ar da sua graça |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 43
Rasgava com as mãos potentes a jaca mole, amarela ânfora de mel; com os dedos retirava os bagos suculentos, o sumo escorria-lhe pelo canto da boca.
Assava na brasa o pedaço de charque - encomendara um espeto a Castor Abduim, mestre ferreiro
astucioso, pulso forte na bigorna, martelo maneiro no remate. A gordura da
carne seca pingava sobre a farinha de mandioca, não podia haver nada de melhor
sabor, guloseima mais grata ao fino paladar de um grapiúna.
Um naco de charque, um punhado de farinha e,
para cortar o sal, bananas - prata bem maduras. Misturavam-se os sabores e os
perfumes da jaca e do jabá, das bananas e da rapadura, dos cajás, das mangabas,
dos umbus.
Em dias de gula e de refinamento, numa
ponta de galho aparado a canivete enfiava uma banana-da-terra e a tostava até vê-la
cor de oiro, rasgada pelo calor. Para evitar que se queimasse, a envolvia numa
camada de farinha, depois de descascá-la: gostosura.
A viração chegava da correnteza do rio,
as putas repousavam da jurema da noite; Tição saía para recolher a caça e
substituir as trampas.
Os cabras no armazém de cacau e os
trabalhadores que construíam o curral para o gado do coronel Robustiano de Araújo
ainda não haviam começado a labuta do dia. Somente o trinado dos pássaros
rompia o silêncio de Tocaia Grande.
A
hora predilecta de Fadul: bebido o café bem quente, sentava-se no batente da porta,
acendia o narguilé, percorria com a vista os aprazíveis arredores: o vale, o
rio, os montes, as árvores e o acanhado casario - Grão-Turco repousando em seu
império.
Dali não arredaria pé: nem por conselho
de doutor, nem por ameaça de jagunço, nem por engodo de mulher. Ainda não
nascera fêmea capaz de obrigá-lo
a desistir, de mudar o curso do destino.
Quem perde a cabeça por mulher a ponto
de abandonar o uso da razão acaba na penúria, objecto de riso e de debique,
avacalhado.
Viesse Zezinha do Butiá à frente de um
cortejo de entrudo, integrado pelas damas mais galantes dos cabarés de Ilhéus e
de Itabuna, nem assim conseguiria levá-lo a cometer um desatino.
Nenhum rabo-de-saia, fosse Zezinha,
mulher da vida, xodó de rua de canto, fosse a donzela Aruza, um partidão, ou Jussara
Ramos Rabat, viúva rica, noivas oferecidas, uma e outra sedutoras e enganosas.
São diversas e desiguais as tentações a que
está sujeito um bom cristão, todas pejadas de ilusório encanto e de real
perigo.
Enquanto retemperava seus propósitos,
mantinha a margem do rio sob vigilância, sobretudo o trecho onde ficava o “bidé
das damas”, nome dado por Castor, negro chegado a francesises, à bacia de
pedras, encachoeirada, na qual as raparigas vinham banhar-se e lavar a roupa.
Quem sabe, Bernarda mostraria o ar de sua
graça e nova em folha após o banho aceitaria povoar de festa e faceirice o
vazio da manhã?
Bernarda, obscuro enigma. Chegara a
pensar outrora que ela lhe concedia preferência na súcia de enamorados de suas prendas
pois deixava-se ficar horas a fio a ouvir histórias das
Mil – e - Uma - Noites, contos da
carochinha, episódios da Bíblia, especialidades do turco, e na cama pelejava
acendida em fogo, derretida em riso.
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