domingo, outubro 26, 2014

Hoje é Domingo
(Na minha cidade de Santarém em 26/10/14)














Por uma coincidência, com certeza muito invulgar, estava de férias na praia, precisamente a ler a  A Jangada de Pedra de José Saramago, quando a comunicação social anunciou a atribuição ao escritor do Prémio Nobel da Literatura.


Lembro-me que segurei com força o livro entre as minhas mãos enquanto sentia invadir-me por um misto de enorme orgulho e alegria.

Eu era já um admirador de José Saramago desde a leitura do Memorial do Convento. Aquela forma de escrita, aquele enredo, aquela enigmática e misteriosa personagem da Blimunda, deixaram-me surpreendido e encantado.

Recordo, que em determinadas passagens da leitura me levantava, livro nas mãos, dirigia-me à secretária do meu amigo Cláudio e dizia-lhe:

- "Cláudio, ouça-me aqui esta passagem…"

Mas foi o Evangelho segundo Jesus Cristo o livro que mais me tocou e enterneceu.

Um “ayatola” qualquer, que os há em todo o lado, da religião católica de Roma, que então era secretário de Estado no governo em Portugal, proibiu a candidatura desta obra a um prémio literário europeu.


Triste e revoltado, José Saramago saiu de Portugal e foi residir para Espanha, para a ilha de Lanzarote, que já tive, entretanto, a oportunidade de conhecer e cuja beleza, de uma riqueza agreste no geral e delicada no pormenor, surpreendente, a lembrar a violência das erupções vulcânicas que estiveram na sua génese, parece ter alguma coisa a ver com o autor e a sua obra.



Um pequenino trecho (pags. 363) de uma passagem deste livro, já na sua parte final, livro  que a intransigência, o sectarismo e as muralhas que nascem em alguns espíritos, tornaram polémico, despropositadamente polémico…


Do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”.




- “Manhã de nevoeiro. O pescador levanta-se da esteira, olha pela fresta da casa o espaço branco e diz para a mulher, Hoje não vou ao mar, com uma névoa assim até os peixes se perdem debaixo de água. Disse-o este, e, por iguais ou parecidas palavras, também o disseram os demais pescadores todos, duma margem à outra, perplexos pela extraordinária novidade de um nevoeiro impróprio da época do ano em que estamos.


 Só um, que pescador de ofício não é, ainda que com os pescadores seja o seu viver e trabalhar, assoma à porta da casa como para certificar-se de que é hoje o seu dia, e, olhando o céu opaco, diz para dentro, Vou ao mar. Por trás do seu ombro, Maria de Magdala pergunta, Tens de ir, e Jesus respondeu, Já era sem tempo, Não comes, Os olhos estão em jejum quando se abrem de manhã.

Abraçou-a e disse, Enfim, vou saber quem sou e para o que sirvo, depois, com uma incrível segurança, pois o nevoeiro não deixava ver nem os próprios pés, desceu o declive que levava à agua, entrou numa das barcas que ali se encontravam amarradas e começou a remar para o invisível que era o centro do mar.”


Aos 88 anos, a morte interrompeu definitivamente a produção literária de José Saramago... um grande prejuízo para todos nós, independentemente da nacionalidade, convicção religiosa ou ideologia política.

Resta-nos continuar a ler e a aprender com as suas obras que é a melhor homenagem que se pode prestar a um escritor.

Site Meter