terça-feira, dezembro 02, 2014

Abriu a boca num urro de animal ferido
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)


Episódio Nº 113


















Também ele acreditava a pés juntos na existência da burra abarrotada de moedas de ouro acumuladas pelo turco: não era um saco, era um baú.

 O ajudante de tropeiro, bisonho nas estradas, desconhecedor do conto, contentou-se com os salvados da fogueira. Logo se juntaram a eles, homens vindos do barracão, mulheres chegadas do brejo.

 Disputaram avidamente as sobras do saque na moradia e no armazém e o que puderam resgatar das chamas. Assim se consumiu parte da falada fortuna de Fadul Abdala, aquela que ele não levava em cima do corpo, as mercadorias deixadas no cacete armado.

Pedro Cigano prosseguiu incansável noite afora a escarafunchar mesmo depois que todos os demais se retiraram.

 Sustentado por duas garrafas de cachaça milagrosamente salvas da sanha de Manezinho, do cagaço de Chico Serra, da sede de Janjão Fanchão e da rapinagem dos aproveitadores, cambada de mofinos.

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A acreditar-se na versão apregoada pelo errante Pedro Cigano a correr sete coxias, as imprecações de Fadul Abdala estremeceram céus e terra, abalaram os quadrantes do mundo, tão terríveis foram.

Anuns e mutuns, papagaios e araras fugiram em bandos para o mais recôndito da mata, os ouriços-cacheiros esconderam-se nos ocos das árvores, os dorminhocos japurás acordaram em sobressalto, os ariscos teiús enfiaram-se sob as pedras, os queixadas e os caititus saíram em disparada, as cobras puseram-se de sobreaviso atinando os botes para o que desse e viesse.

 Potocas do conhecido garganteiro, troca-pernas sem itinerário fixo. Feitas porém as contas, tirados os noves fora, os relatos das demais testemunhas de vista da chegada do turco a Tocaia Grande três dias após o assalto exibiram igualmente dramaticidade e grandiloquência.

Viram-no fora de si esmurrar a caixa do peito com os punhos fechados; depois em desespero, elevar as grandes mãos abertas para o alto apontando em direcção ao desatento, ao negligente, ao omisso Deus dos maronitas a cuja guarda entregara antes de partir a paz da casa, a segurança das mercadorias.

Abriu a boca num urro de animal ferido à traição pelo próprio pai. Cobrou do Senhor em altos brados tê-lo abandonado na hora mais necessitada e amarga e o fez em árabe, tornando o espectáculo ainda mais patético.

Aliás, para falar com Deus, Fadul usava sempre a língua materna, pois não tinha certeza de que o Todo - Poderoso conhecesse o português.

Em português jurou vingança, juras que se perderam vazias de sentido: onde, como e quando poderia executá-las? Nunca.

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