o Motorista
Fevereiro de 2015:
- “ Se eu mandasse vocês
seriam todos exterminados. Não sabem 0 que eu odeio vocês, raça do caralho,
pretos de merda.” Terá dito um agente da polícia da Esquadra
de Alfragide na Cova da Moura, em Lisboa.
Ano de 1963:
- Destacamento militar do Lumbala, distrito do Cazombo, perto da fronteira com a
Zâmbia.
- “Meu Alferes, está
ali um motorista de camião que pede para lhe vendermos pão.”
- “Diz-lhe que aqui não se vende pão, isto é um quartel e não uma
padaria. Põe mais um prato na mesa e convida-o para almoçar comigo.”
A mesa estava
colocada cá fora, em frente da porta do meu quarto num edifício rectangular,
repartido por dentro e com uma cobertura de zinco onde a tropa estava
instalada.
A anterior guarnição
construiu-o, a minha melhorou-o substancialmente dotando-o com casa de banho e
chuveiros apesar do Zambeze passar ali a dois passos e ter sido, nos primeiros
tempos, enquanto ele não encheu, o local ideal dos nossos banhos colectivos, uma espécie de recreio dentro de água.
No espaço do
quartel as crianças luenas, rapazinhos, movimentavam-se à vontade, sentiam-se
bem junto dos soldados a quem, muitos deles, prestavam serviços de lavagem da
roupa.
Comiam connosco do
rancho, frequentavam uma escola improvisada por um Cabo, o professor, e que eles
levavam muito a sério.
Em certo momento do
almoço, o camionista, homem de meia-idade, calejado das estradas infindáveis de
terra batida, mãos enormes, virou-se na cadeira, apontou uma hipotética
metralhadora ás crianças e disse, olhar frio: “matava-as a todas.”
Levantei-me da mesa,
virei-lhe as costas, nunca mais o vi.
O coração de certos homens está cheio de ódio: o do polícia da Esquadra da Cova da Moura, um bairro social problemático de Lisboa e o camionista das estradas do fim-do-mundo do Leste de Angola.
Um ódio que é real e
radica num passado longínquo de tribos inimigas, rivais, em que era preciso
odiar para sobreviver.
Há minha volta,
naquele quartel improvisado, dezenas de militares meus concidadãos, tal como o
motorista, conviviam com aquelas crianças, alimentavam-nas, ensinavam-nas a ler
e defendê-las-iam se as suas vidas estivessem em perigo.
Na Esquadra da Cova
da Moura, bairro problemático, a voz daquele polícia era isolada. De certeza não
era aquela a cultura e o sentimento da generalidade dos seus colegas e não
podemos tomar a nuvem por Juno.
Os camionistas das
estradas da Angola do tempo do colonialismo foram autênticos heróis e a vida de
cada um deles dava um livro de aventuras.
Conheci as estradas,
fiz muitos qui lómetros nelas,
esburacadas e ensopadas, a apanhar “pontapés nas costas” e conheci também
alguns motoristas de camião.
O primeiro deles,
tinha eu chegado há pouco ao Norte de Angola, nem o cheguei a ver. Estava reduzido
a um tição, junto aos pedais da camioneta que tinha sido atacada e queimada.
O ódio não escolhe
raças nem cor: é um fogo que arde cá dentro.
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