quarta-feira, fevereiro 04, 2015

Queixar-se, a quem? Ao bispo?
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 165


4
















Na fulguração do sol a pino, no caminho das matas, vomitaram a narrativa, cada histrião declamou sua parte com entoação precisa; na cova da recidiva enterraram o passado, doloroso espinho, carga inútil.

 Voltaram a ser quase como eram antes da impiedade ter estabelecido método e termo, razão e desrazão. Quase como eram mas não inteiramente: mesmo curadas, as chagas deixam marcas indeléveis.

Mais uma vez o Capitão escutou a corriqueira crônica dos corumbas. Homens e mulheres, do velho ao molecote, cavoucavam medidas braças de terra à meia com o dono e senhor, fazendeiro de gado, chefe político, senador estadual. A vida transcorria plácida, plantavam e colhiam, levavam a parte que lhes tocava à feira de Maroim, vendiam e barganhavam.

 Aos domingos as mulheres acudiam à igreja, os homens ao botequim.

Um dia, sem que nem por que, ficou o dito por não dito. O acerto de boca, a palavra empenhada de nada valeram.

Tiveram de entregar a terra lavrada, a casa, o galinheiro, o poço, a segurança e o riso por dez réis de mel coado.

Convocado à sede da fazenda, o velho regressou com a paga - estipulada pelo Senador - não adianta discutir, é pegar ou largar - prazo para arrumar a trouxa e buscar outra pousada, uma ardência nos olhos, um nó na garganta.

 Queixar-se a quem? Ao bispo?

Para as mulheres no desatino da aflição houve, bem certo, o conforto do padre-mestre, ele próprio afectado pela medida inesperada que vinha privá-lo dos gordos capões, das frutas escolhidas, dos tenros aipins, dádivas semanais daquela boa gente, temente a Deus. Aconselhou resignação e obediência.

De certa maneira - opinou semicerrando os olhos, entrelaçando os dedos sobre a pança - deviam considerar-se criaturas de sorte dado o natural bondoso do Senador. Dono da terra -  ou a terra era deles, por acaso? - Se o Senador quisesse, poderia tê-los posto fora sem pagamento de nenhuma espécie, sem prazo, sem aperto de mão.

 Precisava daquele massapé para transformá-lo em pasto para o gado, capim-gordura em lugar da mandioca e do feijão. O rebanho tinha preferência, nada mais justo.

 O Senador fora duplamente magnânimo: primeiro, ao lhes permitir lavrar e colher, por tanto tempo; depois, ao pagar pelo que não devia. Recordou ainda o prazo concedido, suficiente para que pudessem ir à feira no sábado vender os produtos derradeiros, antes da mudança.

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