sábado, março 07, 2015

Hoje foi um dia especial para mim pelas razões que estão esplanadas no texto que abaixo transcrevo e relativamente ao qual só me cabe acrescentar que o almoço, embora tenha sido o primeiro que organizei, não podia ter corrido melhor.
Todos compareceram, cantámos o hino da nossa Compª., trocámos abraços e sentimos o passado através das recordações, 50 anos depois.
Quando já passaram todos estes anos os almoços de confraternização assemelham-se quase a uma prova de vida. Quem faltará para o ano por falecimento?
- Espero que ninguém embora um ou dois me tivessem parecido bastante abatidos e não só pela idade. Quanto ao resto foi muito agradável aquela troca de piropos: ... "estás muito bem, pá...melhor que da última vez... venha daí mais um abraço."
Não tenho dúvidas que estes almoços são injecções de vida porque, para além das recordações, há a presença dos recordados, os protagonistas, os que viveram connosco o passado e nos dão a ilusão, por uma horas, que voltámos aos vinte e tal anos.
Alguns deles ficaram viúvos recentemente, estão sós, os filhos já não perdem muito tempo com eles, começam a desistir...

Fiquei feliz por ter estado com eles.


Camaradas

Meus amigos

Obrigado por terem comparecido ao nosso almoço acompanhados, a maior parte de vós, pelos vossos familiares.

Se andarem com o relógio do tempo para trás, há precisamente 50 anos, meio século, a 2 de Março de 1965, estávamos a descer as escadas do navio Vera Cruz no Cais da Rocha de Conde Óbitos em Lisboa. Comemoramos hoje, no 1º Sábado seguinte, esse desembarque.

Tínhamos acabado uma guerra, estúpida, só pode ser estúpida quando a filha do Presidente de Angola é quase a dona disto tudo, mas uma guerra, e nesse dia só uma ideia nos movia: matar saudades dos nossos familiares, pais, mulheres, noivas e em alguns casos filhos, que tínhamos deixado 27 meses antes naquele mesmo cais por entre choros e abraços.

No dia seguinte, iria começar a outra guerra, a guerra das nossas vidas da qual somos agora os sobreviventes.

Quando se passa a barreira dos 70 anos, que é já a situação em que todos nos encontramos, percebemos melhor que afinal, para além da nossa família propriamente dita, temos duas outras famílias.

 - A primeira, a dos colegas da escola, que partilharam connosco as carteiras das salas de aula, os pátios das brincadeiras ou os átrios dos edifícios onde estudámos e que me fazem, por exemplo, a mim, almoçar todos os meses com o Frederico Melo e mais meia dúzia de velhotes, como lhes chama a minha neta, e a segunda, a família dos camaradas da guerra.

Entrados que estamos na reforma da vida, desocupados, o que nos sobra mais é tempo para as saudades e recordações do passado. É assim a velhice e não tenhamos medo de o afirmar. Se não houver doenças e dores é bom continuar a viver, mesmo sendo velho.

Quando aqui há uns meses atrás o Furriel José Manuel de Melo me telefonou a questionar sobre o almoço deste ano, respondi-lhe, desanimado que estava com o falecimento recente do Bento, que já não haveria mais almoços, pelo menos como aqueles a que estávamos habituados.

Ora, se assim tivesse acontecido teria sido uma ofensa ao nosso camarada António Bento. Ao desgosto da sua morte juntar-se-ia o desgosto da desagregação da nossa família porque foi ele, o Bento, que a manteve viva e unida com o seu espírito de corpo, com a sensibilidade e percepção que ele tinha de que aqueles homens, que faz agora precisamente 50 anos desembarcaram do Vera Cruz, eram portadores de uma experiência, de uma história e de aventuras em comum que faziam deles uma nova família.

Para lá embarcámos apenas uma Companhia, nada de especial nos unia então. No desembarque, quantas recordações, quantas histórias... éramos já uma família.

Eu agradeço o entusiasmo e o apoio do Furriel Melo, do Pedro Rodrigues, o estímulo do Alferes Melo, do Bic-Bic e já agora o Évora, o José João Neto, que no próprio dia em que recebeu a carta com o convite para o almoço, já lá vão 3 meses, me telefonou logo a dizer: estarei presente com 4 familiares; ou o Rui da Fonseca Martins, de Coimbra, que me enviou um bonito Bilhete de Postal de Boas Festas de Natal a comunicar: “estarei presente com a minha esposa para ter o prazer de abraçar todos os amigos e camaradas e recordar os que já partiram”, ou o nosso querido Dr. Dória que quando me telefonou do Hospital dias depois de ter sido operado e eu lhe disse que tinha um ponto de interrogação relativamente à sua vinda ao almoço me respondeu: “tira o ponto de interrogação e põe um ponto de exclamação.”

A nossa presença, hoje, aqui, é uma homenagem ao António Bento que foi o chefe da nossa família e que, neste momento, está orgulhoso de nós e pensaria:... “eles, afinal, não deixaram morrer os meus almoços”.

A C.ª Caç. 388 continua a ser uma família, a família que ele tornou possível promovendo, religiosamente, durante anos e anos, até ao fim da sua vida, os nossos encontros de confraternização, porque eu sei, nós sabemos, que durante a sua doença ele foi apoquentado por essa preocupação. E agora, o almoço?...

É verdade que a família da 388 vai sendo cada vez mais pequena e nada podemos fazer quanto a isso para além de, enquanto estivermos vivos, não faltarmos a estes almoços.

Não foi só o falecimento do nosso Bento, foi também o do nosso Petrak e o da Sr.ª D.ª Maria Irene, esposa do Dr. Dória, que esteve connosco no Cazombo.

Por mim, na qualidade do Alferes mais antigo desta Comp.ª e agora depois da morte do nosso Capitão 120, do oficial mais antigo, a sugestão do Alferes Melo, enquanto for vivo, puder e vocês quiserem, os encontros da família da C.ª C. 388 passarão a ser aqui, neste local, neste hotel, em Santarém e tenho a certeza de que quando chegar a hora de eu partir o Furriel Melo, o Pedro, o Furriel Bic-Bic, o Furriel Moreira ou qualquer outro de vocês, dará continuidade aos almoços aqui ou em qualquer outro lado.

O António Bento, para além de estar sempre presente nos nossos espíritos, continuará a fazer-se representar pela Sr.ª D.ª Maria Raquel, sua viúva e família, que será sempre nossa convidada para estes almoços.

Uma palavra para outro nosso convidado, o jornalista, Sr. Carlos Dias, que escreveu um livro com o relato muito sincero e autêntico, das memórias inesgotáveis da guerra e da vida do nosso camarada, o António Salvador.

Com este livro, ele não só me fez regressar à caserna como registou as recordações da nossa comissão em Angola do ponto de vista da memória de um de nós. Pudesse ele fazer outro tanto relativamente aos restantes sobreviventes da nossa família e teríamos um puzle mais completo da história da Cª. C. 388, porque ela, a guerra, foi aquilo que cada um de nós registou na sua memória, nem mais nem menos.

Muito obrigado, Sr. Carlos Dias, as memórias do Salvador são um bocadinho as minhas memórias, as de cada um de nós.

Espero-vos aqui para o ano e se doerem os joelhos venham a coxear ou de bengala mas venham. Sigam o exemplo do nosso Alferes Médico Dr. João Manuel Dória Nóbrega que me telefonou do Hospital a dizer, repito: “tira o ponto de interrogação e põe um de exclamação!”

Conheci o Bento melhor desde que comecei a vir a estes almoços do que durante a nossa comissão. Tive azar, ele não era do meu pelotão mas o Furriel Moreira conviveu com ele numa amizade mais estreita e gostava de dizer duas palavras sobre ele.

Vou entregar à Srª Dª Maria Raquel, viúva do António Bento, uma lembrança nossa, uma fotografia emoldurada do marido, no Caripande, na fronteira de Angola a 40/50 km de onde eu estava, no Lumbala.

A dedicatória reza assim:

“À Srª Dª Maria Raquel, viúva do António Bento, com o reconhecimento de todos os camaradas”.

Uma fotografia igual mas mais pequena será entregue a cada um de vós, na altura dos trocos, como ele costumava dizer, para recordação.

Obrigado


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