(Ponhamos em ordem as nossas ideias. Aprendamos com R. Dawkins.)
Por que nos condoemos com o choro de uma criança que sofre?
Por que sentimos compaixão por uma viúva idosa em desespero devido à
solidão?
O que nos provoca o impulso para enviarmos uma dádiva anónima para as
vítimas de um cataclismo que não conhecemos nem viremos a conhecer e nunca nos
retribuirá?
De onde vem o bom samaritano que vive em nós?
Recordemos Einstein:
Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós vem para
uma curta visita, sem saber porquê, contudo, parecemos adivinhar um objectivo.
No entanto, do ponto de vista do quotidiano, há uma coisa que sabemos: que o
homem está aqui pelos outros homens –
acima de tudo por aqueles de cujos sorrisos e bem-estar depende a nossa própria
felicidade.
Será realmente pelos outros homens que nós aqui estamos e terá isso alguma coisa
a ver com a religião?
É por causa dela que somos bons?
Muitas pessoas religiosas consideram difícil imaginar como sem religião
alguém pode ser bom ou há-de sequer querer ser bom, e esta incapacidade para
compreender e aceitar a bondade fora da religião leva algumas pessoas
religiosas a paroxismos de ódio contra aqueles que não professam a sua
religião.
E assim, a religião, que se proclama como fonte de inspiração para a
bondade e o amor transforma-se, ela própria, num imenso reservatório de ódio e
maldade.
Brian Fleming, autor e realizador de um documentário sincero e comovente
em defesa do ateísmo recebeu uma carta em 21 de Dezembro de 2005 que rezava
assim:
“Decididamente, vocês têm cá uma lata! Adorava pegar numa faca e
esventrá-los a todos, seus idiotas, e gritar de alegria a ver as vossas
entranhas a derramarem-se à vossa frente. Vocês andam a ver se arranjam como
atear uma guerra santa em que um dia eu e outros como eu, possamos a vir ter o
prazer de passar aos actos como o atrás mencionado”.
Chegado a este ponto o autor da carta
reconhece tardiamente que a sua linguagem não é muito cristã, pois continua,
agora num tom mais amistoso:
“Contudo Deus ensina-nos a não procurar a vingança mas sim a rezar pelas
pessoas como vocês”.
Mas a benevolência dura-lhe pouco:
“Vai consolar-me saber que o castigo que Deus vos há-de trazer será mil
vezes pior do que o que quer que seja que eu possa infligir. O melhor de tudo é
que vocês hão-de sofrer para toda a eternidade por estes pecados de que estão
completamente ignorantes. A ira de Deus não há-de mostrar misericórdia. Para
vosso próprio bem, espero que a verdade vos seja revelada antes que a faca vos
toque na carne. Feliz NATAL!!!
P.S: - Vocês não fazem mesmo ideia do que vos está
reservado…Eu agradeço a Deus por não ser vocês”.
Estas cartas rancorosas, de que esta é apenas
um exemplo, são mais comuns na América do Norte provenientes de pessoas afectas
a Igrejas de Cristo e a Seitas que proliferam por todos os EUA, mas a carta que
se segue, de Maio de 2005, é de um médico inglês e foi dirigida a Richard
Dawkins.
Depois de uns parágrafos introdutórios a denunciar a evolução e a incitar
o autor a ler um livro que defende que o mundo tem apenas 8.000 anos (será que
ele pode mesmo ser médico?) conclui:
“Os seus livros, o prestígio de que goza em Oxford, tudo o que ama na
vida, e tudo aqui lo que alcançou são
um exercício de total futilidade…A interpeladora pergunta de Camus torna-se
inescapável: porque não cometemos todos suicídio? Na verdade, a sua visão do
mundo tem esse tipo de efeito sobre os estudantes e em muitas outras
pessoas…que todos evoluímos por puro acaso, a partir do nada, e que a esse nada
voltaremos. Mesmo que a religião não fosse verdadeira, é melhor, muito melhor
acreditar num mito nobre, como o de Platão, se durante as nossas vidas ele
conduzir à paz de espírito.
Mas a sua visão do mundo leva à
ansiedade, à toxicodependência, à violência, ao niilismo, ao hedonismo, à
ciência Frankenstein, ao inferno na Terra e à terceira guerra mundial.
Pergunto-me quão feliz será o senhor nas suas relações pessoais? Divorciado?
Viúvo? Homossexual? As pessoas como o senhor nunca são felizes, caso contrário
não se esforçariam tanto para provar que não existe felicidade nem significado em
nada.”
A evolução acontece à custa de alterações genéticas que favorecem a
sobrevivência da espécie e essa é a essência da selecção natural de Darwin.
Muitas vezes, a selecção natural conduz a “becos sem saída” e, nesses
casos, a espécie extingue-se e esse foi o desfecho de todas aquelas que hoje
estudamos sob a forma de fósseis.
Os grandes dinossauros que noutros tempos dominaram a vida sobre a Terra
foram eliminados por alterações drásticas e bruscas que lhes retiraram
totalmente as possibilidades de sobrevivência tendo-se aberto então caminho
para a evolução de outras espécies que até aí não tinham hipótese de evoluir.
Há cerca de sessenta milhões de anos, após o desaparecimento dos grandes
dinossauros, pequenos animais que viviam nas florestas passaram a encontrar um
espaço que até aí não dispunham.
Eram os antepassados dos mamíferos dos quais, hoje, nós somos os seus
mais recentes representantes.
Nada aconteceu por acaso!
Muitos cientistas sustentam que o nosso sentido de certo e errado provem
do nosso passado darwiniano.
Richard Dawkins apresenta, a este
respeito, a sua versão:
-Em primeiro lugar temos os comportamentos de altruísmo e bondade para
com os nossos parentes dos quais o carinho e a protecção que dispensamos aos
nossos filhos é o exemplo mais óbvio mas não o único no mundo animal.
Cuidar dos parentes próximos para os defender, para os alertar contra os
perigos ou partilhar com eles alimentos são comportamentos normais entre
indivíduos que partilham cópias dos mesmos genes.
-Em segundo lugar, temos um outro tipo de altruísmo para o qual existe
uma sólida fundamentação lógica darwiniana que é o altruísmo recíproco (temos
de ser uns para os outros).
Esta teoria trazida para a biologia por Robert Trivers não depende da
partilha de genes e funciona até igualmente bem entre animais de espécie
diferentes, sendo aí chamada de simbiose.
Trata-se do mesmo princípio que está na base de todo o comércio e das
trocas entre os seres humanos.
O caçador precisa de uma lança e o ferreiro precisa de carne. É
assimetria que medeia o acordo.
A abelha precisa de néctar e a flor de ser polinizada.
As flores não podem voar, por isso pagam às abelhas o aluguer das suas
asas e a moeda de pagamento é o néctar.
As guias-do-mel, aves da família “indicatoridae”, conseguem encontrar
colmeias mas não conseguem entrar nelas ao contrário dos ratéis e dos homens.
Então, as aves conduzem, através de um voo atractivo, os ratéis ou o
homem até ao mel e depois ficam à espera da recompensa.
Estas relações mutualistas abundam no reino dos seres vivos: búfalos e
picanços, flores tubulares e beija flores, garoupas e bodiões, etc.
O altruísmo recíproco funciona por causa das assimetrias que há nas
necessidades e nas capacidades de as satisfazer. É por isso que funciona
particularmente bem entre espécies diferentes onde as assimetrias são maiores.
A selecção natural favorece os genes que predispõem os indivíduos, em
relações de necessidade e oportunidade assimétricas, para darem quando podem e
solicitarem quando não podem.
E favorece também as tendências para lembrar as obrigações, para guardar
rancor, para fiscalizar as relações de troca e para punir os trapaceiros que
recebem, mas que não dão quando chega a sua vez de o fazerem.
-Em terceiro lugar, os comportamentos altruístas favorecem o indivíduo
que os pratica porque lhes permite ganhar fama de bondosos e generosos e essa
reputação é importante e os biólogos reconhecem nela valor de sobrevivência darwiniana
não só pelo facto de se serem bons como também por alimentarem essa reputação.
Reputação que não se restringe apenas ao ser humano, de acordo com
experiências recentemente feitas em animais, nomeadamente peixes, e publicadas
num artigo de R. Bshary e A. S. Grutter na revista Nature de Junho de 2006.
-Em quarto lugar, o economista norueguês-americano Thorstein Veblen e de
uma forma diferente o zoólogo israelita Amotz Zahavi, acrescentaram ainda uma
ideia mais fascinante quanto à vantagem dos comportamentos altruístas
considerando-os uma proclamação implícita de domínio ou superioridade.
Por exemplo, os chefes rivais das tribos do noroeste do Pacífico
competiam entre si organizando festins de uma abundância ruinosa.
Só um indivíduo genuinamente superior pode dar-se ao luxo de anunciar o
facto por meio de uma oferta dispendiosa.
Os indivíduos compram o êxito através de demonstrações de superioridade,
incluindo a generosidade ostentatória e o assumir de riscos pelo bem comum.
(onde é que nós já vimos isto?...)
Temos então quatro boas razões Darwinianas para os indivíduos serem
altruístas, generosos ou “morais” uns para com os outros e ao longo da nossa
Pré-Histórica, o ser humano viveu em condições que terão favorecido bastante a
evolução destes 4 tipos de altruísmo.
Vivíamos em aldeias ou, em tempos mais recuados, em bandos nómadas
discretos, parcialmente isolados de aldeias ou de bandos vizinhos, e estas eram
condições que favoreceram extraordinariamente o evoluir das relações altruístas
familiares como factor importante para a sobrevivência do grupo.
E não só para o altruísmo de base parental como igualmente do altruísmo
recíproco ao cruzarem-se com frequência com os mesmos indivíduos e estas são as
condições ideais para se construir a reputação do altruísmo e também para
publicitarem uma generosidade conspícua.
É fácil perceber a razão pela qual os nossos antepassados pré históricos
terão sido bons para os membros do seu próprio grupo mas maus, chegando à
xenofobia, em relação a outros grupos.
Mas agora que a maior parte de nós vive em grandes cidades onde já não
estamos rodeados de parentes e conhecemos indivíduos que não mais voltaremos a
encontrar, por que motivo somos ainda tão bons uns para os outros e até para
aqueles que pertencem a grupos exteriores ao nosso?
É importante não transmitir uma ideia errada sobre o alcance da selecção
natural pois ela não favorece a evolução de uma consciência cognitiva do que é
bom para os nossos genes, o que ela favorece são regras de base empírica que na
prática funcionam no sentido de prover os genes que as criaram.
Vejamos um exemplo:
-No cérebro de um pássaro a regra «cuidar daquelas coisas pequenas que
soltam grasnidos e vivem no ninho e deixar-lhes cair comida nas bocas vermelhas
e escancaradas» tem o objectivo de preservar os genes que criaram a regra
porque os objectos que soltam grasnidos e ficam de boca aberta são os seus
descendentes.
Mas esta regra falha se outra cria de pássaro entra para dentro do ninho,
situação que foi engendrada pelos cucos.
Esta falha ou “tiro fora do alvo”pode também acontecer com os impulsos
para a bondade, altruísmo, empatia, piedade, que o homem continua a desenvolver
quando as condições já são diferentes das que existiam em tempos ancestrais.
Por outras palavras, as condições são outras mas a regra empírica
manteve-se e, portanto, embora hoje as pessoas já não sejam nossos parentes,
façam parte do nosso grupo, ou tenham possibilidade de retribuir, tal como a
ave que por impulso continua a alimentar o filho do cuco, também nós
continuamos a sentir o desejo de sermos bons e generosos.
É como o desejo sexual que não deixa de ser sentido mesmo quando a mulher
é estéril ou toma a pílula e fica incapaz de reproduzir.
São ambos “tiros fora do alvo”, erros darwinianos: abençoados e inestimáveis erros.
Em tempos ancestrais a melhor forma da selecção
natural assegurar a sobrevivência da nossa espécie foi instalando no cérebro
não só a necessidade de acreditar, da qual já falamos num texto anterior, como
também, o desejo sexual e a compaixão ou generosidade.
Estas regras que ditam estes impulsos para acreditar, para o sexo, para a
generosidade e para a xenofobia, são muito anteriores à religião, às
civilizações e aos vários contextos culturais que se limitaram mais tarde a regulá-los,
condicioná-los, instrumentalizá-los, cada um à sua maneira, fazendo deles o
cerne da vida dos homens ao longo de toda a sua existência.
Se voltarmos novamente a pôr a questão de saber qual a razão ou razões pelas quais somos bons, a resposta parece-nos ser agora clara, acessível à nossa razão, quase natural e, acima de tudo, nada ter a ver com qualquer religião.
Tudo, na sua complexidade, parece fácil, lógico e
simples, quando explicado à luz da razão e do conhecimento…
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