Um dia será Prémio Nobel da Literatura |
MERCEDES
Desde que me reformei ando para aqui
como um fantasma. Ligo a televisão, aborreço-me, desligo a televisão, abro o
jornal, aborreço-me, poiso o jornal, deito-me para uma sesta, não durmo,
levanto-me da cama, vou lá abaixo ao café, peço um café, deixo-o esfriar sem
dar por isso, volto para casa ou fico a olhar uma mesa de viúvas, uma delas de
cãozito ao colo, a dar-lhe bocaditos de biscoito, conversando de netos e
doenças, que é mais ou menos a mesma coisa.
Ignorava que houvesse tanta criança inteligente e tanta angina em Portugal. As viúvas de cabelo pintado de louro e o
pó de arroz a flutuar-lhe em torno, não pegado à cara, com mais perfume do que
carne, percebo que baixam a voz para falarem de mim.
- Não é nada mal aquele...
Apesar de me faltar cabelo e da placa dos dentes, aperfeiçoo a
gravata para ficar menos mal ainda, dou um jeito ás têmporas, uma, a mais
gordinha, não me tira os olhos de cima, usa anéis enormes, em quase todos os
dedos e, de vez em quando, dá a impressão que me sorri.
O dono do Café no meu ouvido.
- A dona Mercedes parece que simpatiza com o senhor Pinto
e, confidencial:
- O marido deixou-a bem na vida... o que não me aquece nem
arrefece, mentira, aquece-me um bocado, faz sempre jeito, espreito a dona
Mercedes com mais interesse e encontro os olhos dela fixos nos meus e uma
espécie de suspiro a aumentar e a diminuir o peito considerável, uma segunda
viúva para a dona Mercedes.
- O cavalheiro elegante simpatiza consigo.
A dona Mercedes baixa os olhos, aumenta o pó de arroz das
bochechas e fita-me de novo, uma terceira viúva.
- Vai acabar em romance não tarda.
Volto para casa envergonhado, moro mesmo em frente do Café, num
prédio com salão de beleza Recupere a Mocidade no primeiro andar e eu três
assoalhadas por cima da mocidade recuperada, há qui nze
dias, na minha caixa do correio, para além da publicidade do costume e do aviso
habitual das Finanças, que não tem mais nada que fazer senão incomodar-me, um
sobrescrito cor de rosa com o meu nome no lado do destinatário, Mercedes
Esteves, numa caligrafia caprichada, no lado do remetente, no interior da
página cor de rosa também, com um par de pombinhos azuis a segurarem, cada
qual, a sua ponte de um laçarote branco e a mesma caligrafia caprichada:
Exmo Senhor o telefone da minha residência é o Tal e Tal,
aguardo com esperança uma comunicação sua. Respeitosamente Mercedes do Carmo
Guerreiro Esteves, com um arabesco na ponta, que uma rosa terminava, e o baton
de um beijo, ou não mencionando um cheiro tão espesso, tão forte, tão vivo, que
tive de me encostar à parede para não cair.
Deixei imediatamente de ser um reformado fantasma, subi as
escadas numa leveza de vinte anos. (tenho setenta e cinco).
Sem ligar à televisão nem ao jornal, não me deitei para uma
sesta, não dormi, marquei o número uma primeira vez, respondeu uma voz solene:
- Agência Céu é Seu, funerais, trasladações.
Percebi que tinha trocado um três por um nove. Marquei de novo,
com o coração irregular, uma criatura bem na vida, prédios, terras, se calhar
uma casa na praia, que são coisas que naturalmente perturbam os ventrículos, um
- Siiiiiiiiiiim? de veludo transtornou-me a orelha,
respondi num gaguejo
- Chegou-me uma carta...
Recebi uma pausa comovida em que se embrulhou um
- Estava com tanto medo que me tivesse esquecido consegui
a custo
- Como podia esquecê-la? que continha dúzias de anéis e um
sorriso no topo, e encontrámo-nos nessa tarde num Café diferente, longe das
restantes viúvas, eu a cabeleira loira e um vestido prateado que lhe acentuava
os volumes, silenciosos um diante do outro, tímidos, nervosíssimos, a
partilharmos um chazinho de tília, segurando a asa da chávena de mindinho em
antena até os mindinhos se tocarem, se entrelaçarem, se prenderem, explicar-lhe
- Chamo-me José Pinto e sou reformado do Exército sem
acrescentar que no posto de Sargento, não cheguei a oficial por preguiça,
escutei a palavra
- Exército... num suspiro feliz, completado por um
- Um homem viril... e talvez viril, de facto, embora
trabalhasse de escriturário, há escriturários marciais, capazes de se
sacrificarem pela pátria, o mindinho dela enrolou-se no pulso...
- José... O meu mindinho enrolou-se no pulso
- Mercedes... a sentir, palavra de honra, o beijo do papel
na minha boca, delicado, suave, um joelho contra o meu, um sapato a pisar-me
com doçura...
- Se sonhasse como me faz feliz, José... apesar de um dos
anéis me trilhar um bocadinho a pele, o apartamento dela tão feminino,
naperons, rendas, bonecos de louça, quadros com ninfas, uma sereia quase de
mármore, novelos de tricot num cestinho, um hamster a pedalar a sua roda, nós
perto um do outro num sofazito de verga onde o decote aumentava, o cãozito estendido
numa almofada a olhar-nos numa amizade compreensiva, e nisto um sujeito com o
dobro do meu tamanho e metade da minha idade a puxar-me a gravata
- Quem é este moinante?... empurrando-me para o patamar...
- Pisga-te... fazendo-me tropeçar nos degraus, desequi librar-me, equi librar-me,
desequi librar-me de novo, o sujeito
a censurar à Mercedes
- Nunca mais tens juízo, cretina? e a acrescentar:
- É o qui nto este mês...
A Mercedes chorosa
- Já não posso receber amigos?... seguido de:
- Não me deixes Moisés... seguido de:
- Juro que não volta a acontecer... e não me lembro de
mais nada porque um vaso de flores atirado pelo Moisés lá de cima, me acertou
na cabeça.
Aliás, nem tenho tempo para continuar porque é a hora de ir ao
Centro de Enfermagem mudar a ligadura do penso.
António Lobo Antunes
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home