quinta-feira, abril 23, 2015

Bem querer também é doença, só que não se vê
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 229



















Na ausência de Tição, Ressu, Iia Bassé, cozinheira dos orixás, iniciara os trabalhos, pondo a ferver nas panelas de barro o inhame e o milho branco, cortando os quiabos para o amalá; no fogo, sobre um pedaço de flandre, saltavam as pipocas, os doburus de Obaluaiê.

Na véspera, Castor batera palmas na porta da choça de Ressu e quando a rapariga atendeu na esperança de um michê, ele a saudou invocando o santo: Eparrei! Requisitou seus préstimos: Ressu era cavalo de Iansan, feita num barco de iaôs no candomblé da Casa Branca, mocinha na Bahia.

Ressu colocara no pescoço as contas de cor vermelho-escura e trouxera o alfanje e o erukerê de rabo de cavalo.

Tendo arriado a caça, o negro atravessou o rio, dirigiu-se ao roçado de Altamirando: o porco era indispensável por ser a comida predileta de Omolu.

O sertanejo acabara de acordar, ficou surpreso: Tição caçava queixadas, caititus, porcos-espinhos, para que havia de querer um bicho de chiqueiro? Preciso dele vivo, explicou Tição.

Passara a noite a rondar as armadilhas, inutilmente. Além da paca, apenas uma surucucu-apaga-fogo caíra nas trampas, de porco-do-mato nem vestígio.

- Um leitão lhe faz as vezes? Grande, não tenho. Sangrei o derradeiro sábado passado.

Servia: nem por novo e pequeno leitão deixa de ser da raça dos suínos. Altamirando recusou-se a receber a paga: e os pesos de caça salgada que Ção trazia para casa, mandados de presente por Tição? Sem esquecer que ainda lhe devia um resto de dinheiro das facas de mato feitas à mão, e a crédito, pelo ferreiro.

- Leve o bacorinho, depois a gente acerta.

Nos lados do rio, o céu vermelho anunciava o sol. Os tropeiros ainda dormiam.

19

Para evitar desordem e abusão, começaram por servir cachaça a Exu. Lá estava ele no peji, o pequeno Exu de ferro, o homem das encruzilhadas, o arteiro compadre, a estrovenga maior do que as pernas.

 A seguir, para adiantar o preparo das comidas, cortaram a cabeça do cágado - bicho mais difícil de morrer não há: na panela, os pedaços ainda estrebuchavam e se moviam como se a vida neles perdurasse. Enquanto ativava o fogo, Ressu, sem se voltar, perguntou:

- Ebó de simpatia? Nunca vi tão grande.

- De saúde.

- Tu tá doente? Desde quando?

- Bem-querer também é doença, só que não se vê. Amolece com o corpo do vivente, pior que banzo. Um quebranto, sabe como é?

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