Um dia vou voltar se Deus quiser... |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 213
Tinha visgo que nem cacau: o rosto um
brinco, o corpo uma estátua, a xoxota um abismo, o coração sentimental.
Novamente suspirou, desconsolado. Deu-se
conta de que pensava nela em termos de passado, como se a rapariga houvesse
batido a caçoleta, estivesse morta e enterrada no cemitério de Lagarto, o que
felizmente não era certo.
Na prática fazia pouca diferença:
enterrada no cemitério ou vegetando em casa, só mesmo em sonho ou em pensamento
podia reencontrá-la, ouvir-lhe a fala cantada e mansa convidando-o para o regalo
da cama: vem, turco, me mostrar a rola, já esqueci como ela é.
Punha-lhe nomes, tomava-lhe dinheiro,
embrulhava-o de todo jeito, um anjo do céu, uma mercê de Deus. Cantava modinhas
de ninar: rola, rolinha, rola de amor. Quanta saudade!
Dela Fadul recebera uma única notícia
depois que agoniada se tocara para Sergipe: carta enviada em mão por portador,
o sobrinho Durvalino, varapau adolescente, calça no meio da perna, cara coberta
de cravos e berrugas. Carta de garranchos e borrões, sem pontuação, a letra
graúda e irregular subindo e descendo no papel ao sabor da mão inábil,
Fadul a decifrou e tantas vezes a leu que
quase a decorou. Podia recitá-la como se fosse poesia ou versículo da Bíblia:
“... essas mal traçadas linhas é pra lhe dizer Fadul meu bem que não se esqueço
de você nem nunca vou poder se esquecer porque de noite sonho que tou na cama
abraçada com você e quando dou de mim tou com os olhos molhados e lá embaixo também
onde tu sabe mas um dia vou voltar se Deus qui ser.”
No fim da página, sob a assinatura: “sua
para sempre Maria José Batista”, ela pusera uma quantidade
de vírgulas, pontos finais, pontos de exclamação e de interrogação para ele
espalhar na carta onde conveniente fosse.
Referia-se à breve estada em Tocaia Grande , antes
de viajar: “quando tive aí vi que tu vive muito sacrificado trabalhando que nem
burro de carga.” Por isso lhe enviava o sobrinho Durvalino, filho de sua irmã
mais velha, viúva e tísica, “mais pra lá do que pra cá”, para ser seu
empregado. Qualquer paga que lhe desse, menor que fosse, seria uma caridade:
“mais melhor do que morrer de fome aqui .”
Não deixava porém de fazê-lo de bobo, de
levá-lo no bico, para não perder o mau costume: “fico descansada, sei que tu
não é canguinha e pelo menino boto a mão no fogo.” Anjo do céu, mercê de Deus!
Já vinha pensando em contratar caixeiro
que o ajudasse na balcão, mas onde encontrar alguém de confiança? Nos anos das vacas
magras, ao menos sobrava-lhe o dia inteiro para dormir; se assim qui sesse.
Os tropeiros e as putas constituíam o grosso
da freguesia, de raro em raro alguns passantes. A lida maior acontecia a partir
do fim da tarde e pela manhã bem cedo, sendo essa a parte mais pesada da
labuta.
O movimento, porém, com o plantio das roças, crescera muito. Além de acordar
antes do raiar da aurora e de deitar-se noite alta, durante o decorrer do dia
tinha de manter abertas as portas do armazém, a toda hora aparecia gente.
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