quinta-feira, abril 02, 2015

Um dia vou voltar se Deus quiser...
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº  213



















Tinha visgo que nem cacau: o rosto um brinco, o corpo uma estátua, a xoxota um abismo, o coração sentimental.

Novamente suspirou, desconsolado. Deu-se conta de que pensava nela em termos de passado, como se a rapariga houvesse batido a caçoleta, estivesse morta e enterrada no cemitério de Lagarto, o que felizmente não era certo.

Na prática fazia pouca diferença: enterrada no cemitério ou vegetando em casa, só mesmo em sonho ou em pensamento podia reencontrá-la, ouvir-lhe a fala cantada e mansa convidando-o para o regalo da cama: vem, turco, me mostrar a rola, já esqueci como ela é.

Punha-lhe nomes, tomava-lhe dinheiro, embrulhava-o de todo jeito, um anjo do céu, uma mercê de Deus. Cantava modinhas de ninar: rola, rolinha, rola de amor. Quanta saudade!

Dela Fadul recebera uma única notícia depois que agoniada se tocara para Sergipe: carta enviada em mão por portador, o sobrinho Durvalino, varapau adolescente, calça no meio da perna, cara coberta de cravos e berrugas. Carta de garranchos e borrões, sem pontuação, a letra graúda e irregular subindo e descendo no papel ao sabor da mão inábil,

Fadul a decifrou e tantas vezes a leu que quase a decorou. Podia recitá-la como se fosse poesia ou versículo da Bíblia: “... essas mal traçadas linhas é pra lhe dizer Fadul meu bem que não se esqueço de você nem nunca vou poder se esquecer porque de noite sonho que tou na cama abraçada com você e quando dou de mim tou com os olhos molhados e lá embaixo também onde tu sabe mas um dia vou voltar se Deus quiser.”


No fim da página, sob a assinatura: “sua para sempre Maria José Batista”, ela pusera uma quantidade de vírgulas, pontos finais, pontos de exclamação e de interrogação para ele espalhar na carta onde conveniente fosse.

Referia-se à breve estada em Tocaia Grande, antes de viajar: “quando tive aí vi que tu vive muito sacrificado trabalhando que nem burro de carga.” Por isso lhe enviava o sobrinho Durvalino, filho de sua irmã mais velha, viúva e tísica, “mais pra lá do que pra cá”, para ser seu empregado. Qualquer paga que lhe desse, menor que fosse, seria uma caridade: “mais melhor do que morrer de fome aqui.”

Não deixava porém de fazê-lo de bobo, de levá-lo no bico, para não perder o mau costume: “fico descansada, sei que tu não é canguinha e pelo menino boto a mão no fogo.” Anjo do céu, mercê de Deus!

Já vinha pensando em contratar caixeiro que o ajudasse na balcão, mas onde encontrar alguém de confiança? Nos anos das vacas magras, ao menos sobrava-lhe o dia inteiro para dormir; se assim quisesse.

 Os tropeiros e as putas constituíam o grosso da freguesia, de raro em raro alguns passantes. A lida maior acontecia a partir do fim da tarde e pela manhã bem cedo, sendo essa a parte mais pesada da labuta.

O movimento, porém, com o plantio das roças, crescera muito. Além de acordar antes do raiar da aurora e de deitar-se noite alta, durante o decorrer do dia tinha de manter abertas as portas do armazém, a toda hora aparecia gente.

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