sábado, maio 02, 2015

A VELHICE 
(Por António Lobo Antunes)
















Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica (…). A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais.

Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade. Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares. 

Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. 

Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.



NOTA

Obrigado, António Lobo Antunes, por este texto. Temos em comum a idade (menos 3 anos que eu nem conta), e nas nossas memórias a fisga, o espelho redondo com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado e o canivete que no meu caso era uma navalha igual à que os trabalhadores do campo usavam na Beira-Baixa e que servia para tudo, incluindo tirar bocadinhos à sardinha frita com uma precisão cirúrgica e cortar os respectivos nacos de pão que acompanhavam, nos seus almoços frugais, a sopa de feijão com couves e que lhe dava forças para cavarem de sol a sol.

Vê lá, que tenho ainda presente, como se tivesse sido ontem, o único passarinho que consegui matar com a fisga. Espalmei-lhe a cabeça com a pedra. Teve morte instantânea, caiu da árvore redondo, na vertical, não soube do que morreu, e eu senti-me vaidoso com a minha pontaria. Fosse uma seta em vez de uma simples pedra e ter-me-ia sentido um Robin Hood… os restantes passarinhos aos quais fiz pontaria sempre conseguiram fugir... felizmente para eles... desesperadamente, então, para mim...

Faltava-me o treino, eu era um menino da cidade de Lisboa, tal como tu, mas que tinha a sorte de passar as férias na aldeia dos meus avós onde, no Verão, se juntavam os primos todos.

Mal sabia eu, nessa altura, que estava vivendo os tempos mais felizes e descontraídos da minha vida aqueles que, mais de meio século depois, continuam a fazer-me sentir um menino com o envelope gasto…como dizes magistralmente.
Nunca envelhecerei completamente porque esse menino vai estar sempre presente, mesmo aos 90 anos e não é ele que é o intruso.

Intruso... é tudo aquilo que se intrometeu na minha vida e esbateu as memórias da minha juventude e que faz com que o menino, embora presente, esteja cada vez mais longe de mim. É tal como dizes, não somos velhos, com alguma condescendência seremos meninos que envelheceram.

No teu caso valeu a pena, foste aproveitando o tempo e os anos para escreveres coisas profundamente humanas, que nos falam à alma e que vão ficar para sempre impedindo que morras na memória dos homens embora isso, para ti, já não seja importante.

Importante, verdadeiramente importante, era mesmo continuares sempre menino para poderes chamar aos pombos do Jardim do Príncipe Real, chefes de repartição a passearem de mãos atrás das costas, sim, porque só a perspicácia de observação de um menino poderia ver tal.

Eu, que passei muitas horas nesse Jardim a estudar e a ler na companhia dos tais pombos, só agora, porque falas nisso, acho que alguns também faziam lembrar os polícias de giro do antigamente a passearem a sua autoridade de mãos atrás das costas.

E quanto aos sinais de velhice que referes e que te levam a desconfiar que talvez estejas a ficar velho, brinca com eles, faz chalaça, afinal não és tu um menino cujo envelope se gastou?


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