O sentimento do outro... |
A
GUERRA COLONIAL
(O Meu Testemunho)
Quando, há uns anos atrás, acabei de ver o
primeiro episódio da saga de Joaqui m
Furtado sobre a Guerra Colonial senti, pela primeira vez, que fazia parte da
história deste país.
Os anos cavam uma distância que dá
profundidade às lembranças e 52 anos depois as imagens desprendem-se dos seus
protagonistas, ganham vida própria e entram para uma espécie de arqui vo histórico mesmo de quem as viveu.
Bastava, de resto, reparar que os
jovens que protagonizaram aquelas cenas já pouco tinham a ver com os senhores
de idade que tendo tido a sorte de sobreviver, enriqueceram agora, com o seu
testemunho, sóbrio e distanciado, as imagens que apenas davam uma pequena
amostra da barbárie dos massacres e da violência de uma guerra traiçoeira.
Cheguei ao Úcua a 11 de Novembro de
1962 integrado no Batalhão de Caçadores 381, meses depois do massacre pelos
guerrilheiros da UPA dos civis que ali viviam e trabalhavam e da vingança dos
brancos que posteriormente fuzilaram os negros que drogados avançavam em
direcção às balas das metralhadoras montadas sobre os jipes gritando, meio
enlouquecidos, que “as balas dos brancos eram “maza” (agua) já acontecida à
data em que cheguei.
Uma loucura, uma autêntica loucura a
que muitos não resistiram e acabaram por engrossar as camas do Hospital Psiqui átrico de Luanda e hoje, alguns deles, já quase
uma vida passada, continuam a sofrer os seus efeitos.
A esta distância tudo é estranho e esqui sito e o que mais me ocorre dizer é, mais uma vez, o que se diz no fim de todas as guerras: lamentável,
triste, inútil...
Meses antes do massacre dos colonos
brancos no Norte de Angola, a 15 de Março de 1961, tinha estado eu de visita a
Angola integrado numa viagem de fim de curso do ICSPU chefiada pelo Prof.
Hermano Saraiva, já falecido.
Na região dos Dembos fomos recebidos
pelos fazendeiros com a hospitalidade própria das gentes do Norte de Portugal
que, na ignorância do que lhes iria acontecer pouco tempo mais tarde, ouviram,
encantados, os discursos inflamados de patriotismo do Prof. Saraiva.
O mesmo Sr. Professor que não teve
coragem de prosseguir até ao fim a visita à Baixa do Cassange, no distrito de
Malange, depois de nos termos cruzado com dois homens que ali eram obrigados a
trabalhar para a Cotonang (Consórcio de capitais portugueses, ingleses e
alemães) na cultura do algodão e que transportavam para o Hospital, a qui lómetros de distancia, numa padiola, uma mulher e
uma criança todos eles num estado sub-humano que nos levou a inverter a marcha
e a levá-los nos jeeps ao destino.
O clima muito quente e de elevada
humidade favorecia a cultura do algodão mas a sua exploração só era possível
pelo recurso ao trabalho dos indígenas que para ali eram recrutados à força e
mantidos num regime muito perto da escravatura pois não só eram obrigados a
cultivar o algodão como a vendê-lo à Cotonang ao preço que esta fixava e que
era baixíssimo.
Poucos meses depois daquele encontro,
a 4 de Janeiro de 1961, registou-se ali uma revolta que se saldou pela morte de
milhares (?) de trabalhadores que reivindicavam melhores condições de trabalho,
isenção do pagamento de impostos e a abolição do trabalho forçado.
Anos mais tarde, talvez 1977/78, numa
visita a uma grande Fábrica de Fiação no nosso país, em Tomar, na qualidade de
funcionário da Direcção Geral da Promoção do Emprego do Ministério de Trabalho,
percebi que aquele algodão, produzido naquelas condições desumanas e adqui rido a preços fora da concorrência, tinha ajudado
a manter uma empresa que trabalhava com teares
de princípios do Século, equi pamento
mais que ultrapassado, tão ruidoso que só com tampões nos ouvidos era possível
ali estar.
Em
última análise, o sacrifício da vida daqueles milhares de trabalhadores na
Baixa do Cassange, em Angola, tinha sido inútil, de resultados
contraproducentes que poderiam ser extensivos a toda a exploração colonial. Não
valeram de nada... Manter empresas à custa de trabalho escravo em Angola e
outro, em Portugal, sem direitos defendidos por Sindicatos
proibidos pela Polícia do regime, apenas contribuiu para enriquecer empresários
incompetentes.
...
Bem se poderia dizer que, mais uma
vez, o crime não compensou.
A política irresponsável e criminosa
de um ditador, uma Administração cúmplice, cobarde e servil e uns milhares de
colonos, voluntaristas, gente simples, de trabalho mas desinformada, manipulada
e incapazes de compreender que o quadro para onde as suas vidas se tinham
encaminhado estava transformado numa armadilha fatal.
E tudo isto foi possível de acontecer
por duas razões: uma, de raiz, comezinha, evidente e que não foi percebida por
quase um país inteiro: Aquela não era a nossa terra e aquela gente não era a
nossa!
Viviam num Continente diferente,
falavam línguas diferentes, a sua organização política e social era diferente
como o eram, igualmente, a sua história e as suas crenças. Nada tinham em comum connosco e não consta que
tenham solicitado a nossa presença para os governar.
A segunda razão, é que toda a gente
ignorou os avisos, os sinais, as informações sobre o que iria acontecer,
especialmente as mais altas autoridades administrativas de Angola que nada
fizeram perante os ouvidos moucos do governo de Lisboa.
Talvez Salazar estivesse à espera do
que inevitavelmente iria acontecer para poder mostrar depois na
Assembleia-Geral da Nações Unidas, as fotografias das pessoas trucidadas e
assim justificar a necessidade da presença dos portugueses em África,
fotografias essas que nos foram mostradas um pouco às escondidas, enquanto
cadetes do Curso de Oficiais Milicianos para nos despertar o instinto de
vingança quando, dentro de meses fossemos combater.
A legitimidade da guerra não era
levantada pela generalidade dos soldados que me acompanharam, na sua maioria
pouco menos que analfabetos, mas os seus desabafos e queixumes à boca calada
diziam muito, em termos reprovadores, do que lhes ia na alma sobre aquela
guerra e que era muito diferente, pela certa, do que teriam dito se estivessem
a defender a sua terra e a sua gente.
Satisfaz-me a ideia de que tudo fiz
para os proteger mas, honestamente, tenho que admitir que o acaso nos foi muito
favorável e sem a sua ajuda não teria sido possível regressarmos todos. Como se
costuma dizer: “a sorte na guerra é escapar.”
Acima de tudo o país foi vítima de um
grande logro ao qual se juntaram, ao longo dos anos a seguir ao início da
guerra, um cortejo enorme de mentiras produzidas por generais e políticos que
os deviam ter feito corar de vergonha.
Mas não havia outra saída, as
mentiras alimentam-se umas às outras e o desfecho só poderia ter sido o que
foi: o regresso em massa de mais de 500.000 portugueses desorientados,
confusos, alguns deles, os mais velhos, incapazes de resistir ao seu infortúnio
mas, na generalidade dos casos, a integração foi possível e aconteceu de uma
forma mais fácil e rápida do que se poderia pensar numa demonstração de
vitalidade que talvez ajude a explicar muita coisa neste país de 8 séculos de
existência.
Se
pensarmos no trauma que foi o regresso dos 800.000 franceses a França com a
independência da Argélia em 1962, bem podemos dizer que os portugueses
produziram um milagre que já tinha acontecido com a Revolução dos Cravos, coisa
nunca vista no mundo em nenhum golpe militar.
Falamos
muito dos nossos defeitos e esquecemos esta característica que é nossa, faz
parte dos portugueses: somos tolerantes, pacíficos, a convivência que ao longo
dos séculos desenvolvemos com outros povos que nos contactavam nos muitos
portos ao longo da nossa costa deu-nos a conhecer a diferença e desenvolveu-nos
o sentimento do “outro”.
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