quarta-feira, maio 20, 2015

Vosmicê vê com os olhos e com o entendimento
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 248



















Com a afluência de tantos vizinhos, o Caminho dos Burros... largou Bastião no alvéu, preferiu o negro, cada coisa... - , ela comentou com Bernarda enquanto a ajudava nos cuidados com o menino:

- Bem que eu disse... Só cego pra não ver.

- Comadre, não faça pouco do povo que só vê com os olhos de enxergar. Vosmicê vê com os olhos e com o entendimento.

Coroca previu igualmente a reação do desdenhado: - Não tarda a se meter com outra.

Realmente Bastião da Rosa não vacilou. Não ia perder tempo, trabalho e dinheiro a se lamuriar desinfeliz. Preparara a casa para acolher mulher permanente, constituir família, não ia deixá-la vazia, entregue às cobras e aos percevejos.

 Além de Diva, existiam outras em Tocaia Grande, modernas e garridas, capazes de cuidar do fogão de lenha e dos meninos quando chegassem.
Não precisava ir longe: na casa de farinha, raspando mandioca, revolvendo o tacho, estavam dando sopa as filhas de Zé dos Santos.

Descartando Ricardina, a mais idosa, por zarolha e descabaçada, podia escolher entre Isaura e Abigail, ambas novinhas, bem feitas e inteiras. Escolheu Abigail, a mais morena.

Acaboclado, cabelos lisos, alto e robusto, indivíduo de pouca conversa e de muito ânimo para o trabalho, Zé dos Santos deixava a cargo de sia Clara o destino das filhas, bastavam-lhe as consumições da lavoura.

Sabia que as moças mais dia menos dia tomariam rumo: preocupava-se sobretudo com a falta que fariam no roçado.

Ao contrário do que o nome indica, sia Clara era bastante escura. Cabelo pixaim, gorda e afável, rosto redondo ainda vistoso apesar de envelhecido: atenta às faceirices das meninas não costumava com elas se afligir.

Trouxera de Sergipe os mesmos preconceitos que tanto amarguravam Vanjé, mas se adaptava sem maiores escrúpulos à realidade da terra grapiúna, nova e farta, onde outros valores se impunham e a vida tinha um preço diferente.

O que deveras a preocupava, seu receio maior em relação às filhas, consistia no medo de vê-las cair na zona, putas de porta aberta na Baixa dos Sapos. Isso, sim, a afligiria. Amigação naquele fim-de-mundo significava uma bênção dos céus, mais valiosa do que casamento na igreja em Buquim, de onde viera.

As coisas são como são e não como a gente desejaria, não é mesmo? Aqui ou lá, bênção de padre e merda, a mesma coisa, sem a menor valia.

As três filhas de José dos Santos e sia Clara tinham saído tão dessemelhantes, no físico e nas maneiras, que nem pareciam irmãs de pai e mãe.

Isaura puxara à mãe na cordialidade, boa de conversa e de convívio, ao pai nos cabelos lisos e na cor da pele cobreada, esguia cabo-verde marcada pelo sangue indígena.

 Abigail, calada igual a Zé dos Santos, no mais era ver sia Clara: gorducha, carregada na cor, veludosa carapinha, olhos rasgados; nela predominara o sangue negro. De que avô branco herdara a doca Ricardina, um mulherão, os cabelos loiros e a tez alva, os olhos azuis e o tamanho?

Nas famílias sergipanas, mestiças de tantos sangues, de quando em quando desponta num recém - nascido os olhos azuis e os cabelos loiros, a branquidão e a estatura de um avoengo holandês ou, quem sabe, cristão-novo, vindo para Recife com o Príncipe Maurício de Nassau.

Fugido, após a derrota, para a capitania de Sergipe del Rei, ali homiziado e aceito, radicado para sempre, fazendo filhos em negras e mulatas.

Ricardina, um bom exemplo, apesar de caolha: não se pode exigir a perfeição. Entre Isaura e Abigail vacilara Bastião ao rejeitar os cornos, mas a dúvida durou pouco, conquistado que foi pela mansidão de Abigail.

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