Vosmicê vê com os olhos e com o entendimento |
TOCAIA
GRANDE
(Jorge
Amado)
Episódio Nº 248
Com a afluência de tantos vizinhos, o Caminho dos Burros... largou Bastião no alvéu, preferiu o negro, cada coisa... - , ela comentou com Bernarda enquanto a ajudava nos cuidados com o menino:
-
Bem que eu disse... Só cego pra não ver.
-
Comadre, não faça pouco do povo que só vê com os olhos de enxergar. Vosmicê vê
com os olhos e com o entendimento.
Coroca
previu igualmente a reação do desdenhado: -
Não tarda a se meter com outra.
Realmente
Bastião da Rosa não vacilou. Não ia perder tempo, trabalho e dinheiro a se lamuriar
desinfeliz. Preparara a casa para acolher mulher permanente, constituir
família, não ia deixá-la vazia, entregue às cobras e aos percevejos.
Além de Diva, existiam outras em Tocaia Grande ,
modernas e garridas, capazes de cuidar do fogão de lenha e dos meninos quando
chegassem.
Não precisava ir longe: na casa de
farinha, raspando mandioca, revolvendo o tacho, estavam dando sopa as filhas de
Zé dos Santos.
Descartando Ricardina, a mais idosa, por
zarolha e descabaçada, podia escolher entre Isaura e Abigail, ambas novinhas,
bem feitas e inteiras. Escolheu Abigail, a mais morena.
Acaboclado, cabelos lisos, alto e
robusto, indivíduo de pouca conversa e de muito ânimo para o trabalho, Zé dos
Santos deixava a cargo de sia Clara o destino das filhas, bastavam-lhe as
consumições da lavoura.
Sabia que as moças mais dia menos dia
tomariam rumo: preocupava-se sobretudo com a falta que fariam no roçado.
Ao contrário do que o nome indica, sia
Clara era bastante escura. Cabelo pixaim, gorda e afável, rosto redondo ainda
vistoso apesar de envelhecido: atenta às faceirices das meninas não costumava
com elas se afligir.
Trouxera de Sergipe os mesmos
preconceitos que tanto amarguravam Vanjé, mas se adapt ava
sem maiores escrúpulos à realidade da terra grapiúna, nova e farta, onde outros
valores se impunham e a vida tinha um preço diferente.
O que deveras a preocupava, seu receio
maior em relação às filhas, consistia no medo de vê-las cair na zona, putas de
porta aberta na Baixa dos Sapos. Isso, sim, a afligiria. Amigação naquele
fim-de-mundo significava uma bênção dos céus, mais valiosa do que casamento na
igreja em Buqui m, de onde viera.
As coisas são como são e não como a
gente desejaria, não é mesmo? Aqui
ou lá, bênção de padre e merda, a mesma coisa, sem a menor valia.
As três filhas de José dos Santos e sia
Clara tinham saído tão dessemelhantes, no físico e nas maneiras, que nem
pareciam irmãs de pai e mãe.
Isaura puxara à mãe na cordialidade, boa
de conversa e de convívio, ao pai nos cabelos lisos e na cor da pele cobreada,
esguia cabo-verde marcada pelo sangue indígena.
Abigail, calada igual a Zé dos Santos, no mais
era ver sia Clara: gorducha, carregada na cor, veludosa carapinha, olhos
rasgados; nela predominara o sangue negro. De que avô branco herdara a doca
Ricardina, um mulherão, os cabelos loiros e a tez alva, os olhos azuis e o
tamanho?
Nas famílias sergipanas, mestiças de tantos
sangues, de quando em quando desponta num recém - nascido os olhos azuis e os
cabelos loiros, a branqui dão e a
estatura de um avoengo holandês ou, quem sabe, cristão-novo, vindo para Recife
com o Príncipe Maurício de Nassau.
Fugido, após a derrota, para a capitania
de Sergipe del Rei, ali homiziado e aceito, radicado para sempre, fazendo filhos
em negras e mulatas.
Ricardina, um bom exemplo, apesar de
caolha: não se pode exigir a perfeição. Entre Isaura e Abigail vacilara Bastião
ao rejeitar os cornos, mas a dúvida durou pouco, conqui stado
que foi pela mansidão de Abigail.
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