sexta-feira, junho 19, 2015

O rio então desceu das cabeceiras, rugindo
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 270

















7

A cabeça-d’água alimentada pelas chuvas do dilúvio cresceu
nas nascentes do rio das Cobras, ergueu-se altíssima montanha, e espoucou. O rio então desceu das cabeceiras, rugindo, varrendo tudo o que encontrou em sua frente.

Opresso nos limites imemoriais das margens, atrabiliário ele os rompeu e a enchente inundou Tocaia Grande. Foi um horror, recordava o Turco Fadul.

Na mata invadida, os animais fugiam apavorados, subindo
pelas árvores, enfiando-se terra adentro, num êxodo onde se misturavam cobras e onças, passarinhos e macacos, porcos-do-mato, tatus e capivaras, lerdas preguiças movendo-se de galho em galho.

Os que não escaparam a tempo lutavam impotentes contra a correnteza, logo os corpos foram muitos e diversos, boiando à deriva, bichos selvagens e criações domésticas.

Com o estrondo, quem estava dormindo se acordou, quem velava à espera do pior pôs-se de pé, saíram todos portas afora.
O rio arremetia insano, a massa de água crescia a cada instante e se alastrava, destruindo o que encontrava pela frente. Ao rio se juntou o vento, rodopiando furibundo, para terminarem de vez com o arraial.

Vislumbravam-se vultos na escuridão, alguns empunhando fifós que em seguida se apagavam, outros gritando recomendações, pedidos de socorro, ordens, quem sabe o quê: o vendaval consumia as palavras e a luz das candeias.

Não se ouvia nada além do ronco apavorante da enxurrada e do bramido fúnebre do tufão.

Um homem passou correndo, era o carpina Lupiscínio, foi-se postar junto ao pontilhão. Será que pensava sustentá-lo com as mãos, defendê-lo com o corpo? Mulheres afluíam da Baixa dos Sapos, desatinadas; chegava gente do Caminho dos Burros; reuniam-se no descampado em pasmo e confusão, em alarido e choro.

Ninguém sabia para onde ir nem o que fazer. Mais forte que o terror e o desespero, a voz tonitruante do árabe Fadul Abdala cobriu o zunido do pé-de-vento e o motim das águas. Punhos erguidos, desafiava os céus.

8

Primeira construção a ruir e a ser tragada no caudal das águas, o velho palheiro, apodrecido pelo tempo, arrastou em seus destroços a memória de alegrias e tristezas.

Quando havia dança no chão de barro batido, sólido que nem cimento, o Turco Fadul, usando vocabulário de cabaré, denominava-o pomposamente salão de baile. Mas servira com igual proveito de dormitório para tropeiros e passantes que ali acendiam braseiros para chamuscar jabá e esquentar café.

Juntavam-se em roda dos baralhos, sala de jogo, cassino de apostas, antro de trapaças e bafafás onde refulgia amiúde o aço dos punhais.

Cenáculo de prosa e cantoria: casos embelecos, abusões, modinhas, repenicar de violão e cavaquinho, sons de concertina.

Enfermaria de hospital, ali repousaram doentes em trânsito para Itabuna em demanda de médico e farmácia.

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