Indo de cova em cova podia contar-se a história |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 286
Se as putas satisfaziam-lhe as exigências,
não discutia preço e pagamento.
Pelo jeito, na opinião dos entendidos e
eram muitos, Ção se afogara tentando salvar seu Cícero Moura, que não sabia
nadar, banhava-se na água rasa, no Bidé das Damas.
Na hora do desespero atracara-se com a
lesa, impedindo-lhe os movimentos; com o braço rodeara-lhe o pescoço e o
apertara. Ninguém qui s comentar o
acontecido: não sendo na animação da sentinela, o melhor era esquecer.
Altamirando e Das Dores carregaram a rede
com o corpo da filha. O Capitão e Fadul levaram o corpo franzino de seu Cícero Moura,
calçado com as botas, vestido com o capote, os olhos abertos, esgazeados.
No acompanhamento não faltou quase
ninguém. Zé dos Santos e sia Clara, o povo de Ambrósio, o clã dos estancianos,
à exceção de sia Leocádia que não estimava cemitérios.
Dos morros onde se acoitavam desceram os
moradores do
Caminho dos Burros e o enxame de putas.
Merenda fez o pelosinal, rezou um padre-nosso.
Outra adivinha a decifrar: quem conseguira
colher, nos cúmulos das
baronesas, uma flor intacta, azulceleste, e a colocara entre os dedos de Ção?
Situado numa encosta, o cemitério não fora
atingido pela cheia, permanecia incólume. Entre as covas vicejavam mamoeiros, bananeiras,
cajueiros, pitangueiras, agreste pomar, alegre de cores, rico de aromas.
Indo de cova em cova podia-se contar a história
inteira de Tocaia Grande, desde o remoto e nebuloso começo de lenda e patranha,
até o descalabro da enchente ainda acontecendo.
23
A enchente durou mais de trinta horas de
agonia até que na segunda noite as chuvas tornaram-se intermitentes e as águas
começaram a baixar, a refluir lentamente para o leito do rio.
Um sol mofino iluminou o chão de lama e a
devastação se mostrou plena, desnuda e suja.
Numa e noutra margem, a ruína e o
abandono: as plantações alagadas, o cultivo destruído, a criação dizimada. No
arraial restaram as poucas casas de tijolos e de pedra-e-cal, meia dúzia de barracos
de adobe, o depósito de cacau, o curral, o forno da olaria, a oficina do
ferreiro, o armazém do turco, a residência do Capitão no alto da colina.
Na Baixa dos Sapos apenas a casinhola de
madeira de Coroca e Bernarda.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home