segunda-feira, julho 20, 2015

O motivo teria a ver com a morte de Ção nos braços
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 288


















- Um passarinho pousou no meu ombro e soprou em minha orelha. Tu não sabe que os passarinhos são meus próprios? Me contam de um tudo.

O sumiço se estendera por meses e meses. As notícias trazidas pelos tropeiros impediram que o considerassem morto e enterrado: animava dançarás nas quebradas do mundo e a todos perguntava por Tocaia Grande.

Para explicar ausência tão prolongada, havia quem afirmasse que Pedro Cigano tomara raiva do lugar, raiva ou desgosto. Só podia ser.

O motivo teria a ver com a morte de Ção nos braços de seu
Cícero Moura, um nanico, um pigmeu. A verdade de tais invencionices nunca se consegue comprovar, mas se mestre Pedro pensou que por haver sido o primeiro, seria o único a derrubá-la sob o emborco da canoa, revelara total ignorância a respeito da natureza das lesas, outra nação muito singular.

Na crônica fortuita dos caminhos, as patranhas se alimentavam de ouvir dizer; Pedro Cigano jamais se gabara das primícias do cabaço de Ção; ao contrário, se alguém puxava o assunto, ele mudava de conversa.

De qualquer maneira, por adivinhação ou por sabedoria, por ter superado o desgosto ou não ter suportado a saudade, apenas acertada a data da festança inaugural do barracão, ei-lo acomodado junto ao balcão do armazém, saboreando a lambada gratuítes de cachaça, oferecida por Fadul Abdala no calor das boas-vindas:

- Como havia de faltar? Quem foi que inaugurou os outros dois? Nem a morte podia me impedir: levantava da cova e vinha.

A inauguração fora marcada para o domingo, sete de setembro, aliás por feliz coincidência data comemorativa da proclamação da Independência do Brasil, conforme lembrou o turco, cidadão informado e patriota, o único em Tocaia Grande.

Para os demais, essa história de independência era conversa-fiada, vaga e abstrata, acanhada, sem rudimentos nem larguezas.

Para Tição tinha a ver com o Dois de Julho e o desfile dos grupos escolares nas cidades do Recôncavo, os meninos carregando bandeiras e andores com as figuras do caboclo e da cabocla.

No Dois de Julho, usando arcos e flechas contra as baionetas, os índios haviam expulsado os portugueses. Ou isso ou coisa parecida.

- Só faltava mesmo o amigo. - Concordou Fadul. Como poderia estar ausente? A voz amarga revelava a justa indignação do sanfoneiro. Quem senão ele colaborara na construção dos galpões anteriores? Do palheiro, se recorda, seu Fadul?

Um palácio, se comparado à precária caranguejola situada no centro do descampado, entre o rio e as colinas: quatro paus fincados na terra, cobertos com quatro palmas de dendê levantado em noite de chuva e frio, pelos tropeiros que haviam aberto na força dos facões e nas patas dos burros a trilha inicial para reduzir as léguas da estirada.

Ele, Pedro Cigano, ajudara a pôr de pé o primitivo abrigo. Não via motivo para riso e troça. Fora de bastante ajuda, pois não: dera palpites e alvitres, tirara teimas.

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