Como se percebe, este não sou eu. |
A Minha Ida à Médica
Srª Drª, vim hoje à sua consulta porque fiz há dias setenta e seis anos e já percebi, que a partir dos setenta, cada ano pode ser um mundo de surpresas desagradáveis. A Srª Drª ouve, com certeza, muitos velhos com a minha idade que se queixam de coisas que devem ter a ver com os setenta e seis anos de idade.
Eu tive a minha experiência do que foram os meus
quarenta, cinquenta e até sessenta anos. Pagávamos um almoço à família e à
tardinha acendiam-se as velas do bolo, cantavam-se os parabéns, e não se voltava
a pensar no assunto.
Sabe, Srª Drª, joguei ténis durante trinta anos, duas
vezes por semana, por gosto, direi mesmo, pelo prazer que me dava, e costumava
dizer aos meus amigos que o campo de ténis era o meu laboratório de análises.
Saindo de lá feliz e bem disposto era porque tudo ia bem comigo.
Até um dia, precisamente a partir dos setenta anos,
quando as minhas pernas deixaram de se movimentar com a mesma firmeza. Não dava
para me queixar porque, simplesmente, não gostamos de nos queixar do que
gostamos de fazer e nos dá prazer.
Um dia, passados mais uns dois ou três anos, comecei a
queixar-me. Dizia à minha nora, que é médica, que tinha febres baixas e dores
de cabeça, especialmente da parte da tarde, e até me lembrei que fossem restos
de paludismo que apanhei em Moçambique.
A “boa” da Ana pesqui sou
tudo até que, finalmente, quando eu já desesperava, encontrou a resposta num
exame que me mandou fazer à medula.
Eu tinha uma disfunção no seu funcionamento e aqui lo que eu sentia de muito grave, febres baixas e
dores permanentes de cabeça, foram tratadas, dada a perspicácia e competência
de uma médica do Hospital de Santarém, do nosso abençoado Serviço Nacional de
Saúde, com um simples choque vitamínico de vitamina B1.
O funcionamento da medula, o delicioso tutano que a
minha mãe me punha na sopa, quando era menino, dentro dos respectivos ossos,
com uma linha à volta para não saírem, e eu adorava comer esmigalhado no pão, é
algo de muito complexo.
O mesmo tutano que terá salvo, talvez, a nossa espécie
quando os nossos antepassados descobriram que os podiam partir com uma pedra,
antepassada do martelo, e retirar de lá o precioso tutano que os havia de
manter vivos. Era apenas seguir as feras e “atacar” os ossos das carcaças por eles
abandonadas.
O tutano, desculpem, a medula, produz importantes
elementos que introduz no sangue, desde as plaquetas, glóbulos brancos,
vermelhos, praticamente todas as células do sangue e, tudo isso, numa certa
proporcionalidade, com equi líbrio.
Este equi líbrio,
com o choque vitamínico (6 comprimidos por dia, nada de mais simples) foi
reposto, pelo menos o suficiente, para que a minha vida pudesse ser retomada em
termos normais mas, Srª Drª, como especialista que é, agora, depois de eu ter
feito 76 anos, preciso de uma palavra sua de que tudo vai continuar a decorrer,
pelo menos como até aqui , porque
esta década dos setenta, já me apercebi, não é de confiança.
O problema, Srª Drª, é que as pessoas chegam a velhas
sem nunca o terem sido, não têm experiência da velhice, é um mundo novo mas, se não
fosse a medula, eu nem teria razões de queixa pois a idade levou-me,
surpreendentemente, as dores do nervo ciático, provenientes da coluna, que me
apoquentaram periodicamente, durante anos, e das quais nunca mais tive notícias.
Lembro-me dos velhos, nos meus tempos de jovem, se
queixarem de que a idade tudo trazia em matéria de dores. No que a mim me diz
respeito, em vez de as trazerem, levaram-nas.
De que me queixo, Srª Drª? - De nada.
Desculpe o tempo que lhe roubei mas, aos 76 anos de
idade, vimos ao médico para ele nos ouvir, pois não tenho coragem de lhe pedir
que me reavive a memória, dê firmeza às pernas e contrarie esta tendência, cada
vez maior, de andar com os pés a arrasar o chão correndo o risco de tropeçar numa
pedra mais saliente do passeio e cair, como aconteceu no outro dia.
“Salvou-me” a minha vizinha do 5º Andar tão prestimosa
em socorrer-me, ajudando-me a levantar do chão.
Talvez, se eu fosse católico, procurasse um padre para
conversar, mas sou ateu e esses senhores não me dão nenhum tipo de consolo,
independentemente das boas e desinteressadas obras de carácter social que
muitos desenvolvem.
Sabe, Srª Drª, tenho por si uma grande admiração, porque a senhora é o único médico que eu me lembre, tirando o da aldeia dos meus avós, quando eu era pequenino, que me manda deitar na marquesa, subir a camisa, e me apalpa a barriga... sem máscara nem luvas de plástico.
Boa tarde, Srª Drª. Passe bem.
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