sábado, agosto 29, 2015

Como se percebe, este não sou eu.
A Minha Ida à Médica












Srª Drª, vim hoje à sua consulta porque fiz há dias setenta e seis anos e já percebi, que a partir dos setenta, cada ano pode ser um mundo de surpresas desagradáveis. A Srª Drª ouve, com certeza, muitos velhos com a minha idade que se queixam de coisas que devem ter a ver com os setenta e seis anos de idade.
Eu tive a minha experiência do que foram os meus quarenta, cinquenta e até sessenta anos. Pagávamos um almoço à família e à tardinha acendiam-se as velas do bolo, cantavam-se os parabéns, e não se voltava a pensar no assunto.
Sabe, Srª Drª, joguei ténis durante trinta anos, duas vezes por semana, por gosto, direi mesmo, pelo prazer que me dava, e costumava dizer aos meus amigos que o campo de ténis era o meu laboratório de análises. Saindo de lá feliz e bem disposto era porque tudo ia bem comigo.
Até um dia, precisamente a partir dos setenta anos, quando as minhas pernas deixaram de se movimentar com a mesma firmeza. Não dava para me queixar porque, simplesmente, não gostamos de nos queixar do que gostamos de fazer e nos dá prazer.
Um dia, passados mais uns dois ou três anos, comecei a queixar-me. Dizia à minha nora, que é médica, que tinha febres baixas e dores de cabeça, especialmente da parte da tarde, e até me lembrei que fossem restos de paludismo que apanhei em Moçambique.
A “boa” da Ana pesquisou tudo até que, finalmente, quando eu já desesperava, encontrou a resposta num exame que me mandou fazer à medula.
Eu tinha uma disfunção no seu funcionamento e aquilo que eu sentia de muito grave, febres baixas e dores permanentes de cabeça, foram tratadas, dada a perspicácia e competência de uma médica do Hospital de Santarém, do nosso abençoado Serviço Nacional de Saúde, com um simples choque vitamínico de vitamina B1.
O funcionamento da medula, o delicioso tutano que a minha mãe me punha na sopa, quando era menino, dentro dos respectivos ossos, com uma linha à volta para não saírem, e eu adorava comer esmigalhado no pão, é algo de muito complexo.
O mesmo tutano que terá salvo, talvez, a nossa espécie quando os nossos antepassados descobriram que os podiam partir com uma pedra, antepassada do martelo, e retirar de lá o precioso tutano que os havia de manter vivos. Era apenas seguir as feras e “atacar” os ossos das carcaças por eles abandonadas.
O tutano, desculpem, a medula, produz importantes elementos que introduz no sangue, desde as plaquetas, glóbulos brancos, vermelhos, praticamente todas as células do sangue e, tudo isso, numa certa proporcionalidade, com equilíbrio.
Este equilíbrio, com o choque vitamínico (6 comprimidos por dia, nada de mais simples) foi reposto, pelo menos o suficiente, para que a minha vida pudesse ser retomada em termos normais mas, Srª Drª, como especialista que é, agora, depois de eu ter feito 76 anos, preciso de uma palavra sua de que tudo vai continuar a decorrer, pelo menos como até aqui, porque esta década dos setenta, já me apercebi, não é de confiança.
O problema, Srª Drª, é que as pessoas chegam a velhas sem nunca o terem sido, não têm experiência da velhice, é um mundo novo mas, se não fosse a medula, eu nem teria razões de queixa pois a idade levou-me, surpreendentemente, as dores do nervo ciático, provenientes da coluna, que me apoquentaram periodicamente, durante anos, e das quais nunca mais tive notícias.
Lembro-me dos velhos, nos meus tempos de jovem, se queixarem de que a idade tudo trazia em matéria de dores. No que a mim me diz respeito, em vez de as trazerem, levaram-nas.
De que me queixo, Srª Drª? -  De nada.
Desculpe o tempo que lhe roubei mas, aos 76 anos de idade, vimos ao médico para ele nos ouvir, pois não tenho coragem de lhe pedir que me reavive a memória, dê firmeza às pernas e contrarie esta tendência, cada vez maior, de andar com os pés a arrasar o chão correndo o risco de tropeçar numa pedra mais saliente do passeio e cair, como aconteceu no outro dia.
“Salvou-me” a minha vizinha do 5º Andar tão prestimosa em socorrer-me, ajudando-me a levantar do chão.
Talvez, se eu fosse católico, procurasse um padre para conversar, mas sou ateu e esses senhores não me dão nenhum tipo de consolo, independentemente das boas e desinteressadas obras de carácter social que muitos desenvolvem.
Sabe, Srª Drª, tenho por si uma grande admiração, porque a senhora é o único médico que eu me lembre, tirando o da aldeia dos meus avós, quando eu era pequenino, que me manda deitar na marquesa, subir a camisa, e me apalpa a barriga... sem máscara nem luvas de plástico.
Boa tarde, Srª Drª.  Passe bem. 

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