Eu morri, liberta a minha morte. |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 318
Encontrou-se nos portões da noite, ainda
fechados, diante do egum de Iemanjá, mas só o via da cintura para baixo. Trapos
nojentos o cobriam, exalavam o fedor da febre, exibiam sua repugnante porcaria
e os pés estavam amarrados com correntes iguais às que ele em menino vira na
senzala do engenho: tinham servido para prender os pés dos escravos e lhes
impedir a fuga para a liberdade.
Tição não conseguia distinguir-lhe o rosto
projetado nas alturas mas reconheceu o marulho da voz de Diva sussurrando-lhe ao
ouvido as palavras familiares de dengue e de ternura: meu branco, sou tua preta
e aqui estou.
Voz sofrida, entrecortada de soluços,
lavada em pranto, transbordava mágoa e queixa, amargura.
Qual a razão de tão profundo sofrimento?
Queres saber? Vou te dizer, escuta! Iniciou a acusação. Perguntou por que Tição
não a libertava, não lhe dava a moeda do axexê para pagar o barco da morte, por
que a prendia num mundo que já não era o dela e a mantinha amarrada em cadeias
de tristeza e de revolta?
Eu, que morri na maré da peste, sou
obrigada a viver, tu, que estás vivo, pareces morto, tudo pelo avesso e pelo
vice-versa, tudo ao contrário e desconforme.
Ai, meu branco, tua preta está cumprindo
pena, tu me condenaste, não tenho paz. Para que me queres pesando em teu
costado?
Liberta minha morte e guarda em teu
coração minha lembrança viva. Por que manténs meus trapos juntos dos teus no
caixão de querosene e sobre eles o abebê que um dia cinzelaste para mim com um
prego caibral e tua astúcia?
Livra-me das cadeias: toma de meus trapos
e leva-os para Lia e Dinorá, ainda possuem serventia. Coloca o abebê no peji
dos orixás porque agora sou uma encantada, um egum de Iemanjá.
Chama Epifânia de Oxum e Ressu de Iansan e
dança com elas o meu axexê: até hoje não o dançaste.
Liberta minha morte que prendeste em teu
peito e volta a viver como vivias antes de me conhecer. Quero escutar teu riso claro
e alegre. Não quero teu choro nem teu desespero.
Volta a ser Tição, de novo, um homem.
Os soluços cessaram, as queixas, a
acusação e o que foi mágoa voltou a ser cálida ternura: meu branco, ai, meu
branco, escuta o que te vou dizer.
Disse e por três vezes repetiu para que o
dito e o repetido se lhe encaixasse na cachola dura e obstinada: fora ela,
Diva, sua falecida, sua preta, a mãe de Tovo, quem guiara os passos de
Epifânia, levando-a de retorno à oficina para que ela tomasse o menino a seus
cuidados.
Homem sozinho, nunca soube criar filhos, Tovo
não aprendera sequer a rir, mais parecia um bicho-do-mato do que uma criança.
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