sábado, agosto 22, 2015

Eu morri, liberta a minha morte.
Tocaia Grande
(Jorge Amado)





Episódio Nº 318




















Encontrou-se nos portões da noite, ainda fechados, diante do egum de Iemanjá, mas só o via da cintura para baixo. Trapos nojentos o cobriam, exalavam o fedor da febre, exibiam sua repugnante porcaria e os pés estavam amarrados com correntes iguais às que ele em menino vira na senzala do engenho: tinham servido para prender os pés dos escravos e lhes impedir a fuga para a liberdade.

Tição não conseguia distinguir-lhe o rosto projetado nas alturas mas reconheceu o marulho da voz de Diva sussurrando-lhe ao ouvido as palavras familiares de dengue e de ternura: meu branco, sou tua preta e aqui estou.

Voz sofrida, entrecortada de soluços, lavada em pranto, transbordava mágoa e queixa, amargura.

Qual a razão de tão profundo sofrimento? Queres saber? Vou te dizer, escuta! Iniciou a acusação. Perguntou por que Tição não a libertava, não lhe dava a moeda do axexê para pagar o barco da morte, por que a prendia num mundo que já não era o dela e a mantinha amarrada em cadeias de tristeza e de revolta?

Eu, que morri na maré da peste, sou obrigada a viver, tu, que estás vivo, pareces morto, tudo pelo avesso e pelo vice-versa, tudo ao contrário e desconforme.

Ai, meu branco, tua preta está cumprindo pena, tu me condenaste, não tenho paz. Para que me queres pesando em teu costado?


Liberta minha morte e guarda em teu coração minha lembrança viva. Por que manténs meus trapos juntos dos teus no caixão de querosene e sobre eles o abebê que um dia cinzelaste para mim com um prego caibral e tua astúcia?

Livra-me das cadeias: toma de meus trapos e leva-os para Lia e Dinorá, ainda possuem serventia. Coloca o abebê no peji dos orixás porque agora sou uma encantada, um egum de Iemanjá.

Chama Epifânia de Oxum e Ressu de Iansan e dança com elas o meu axexê: até hoje não o dançaste.

Liberta minha morte que prendeste em teu peito e volta a viver como vivias antes de me conhecer. Quero escutar teu riso claro e alegre. Não quero teu choro nem teu desespero.

Volta a ser Tição, de novo, um homem.
Os soluços cessaram, as queixas, a acusação e o que foi mágoa voltou a ser cálida ternura: meu branco, ai, meu branco, escuta o que te vou dizer.

Disse e por três vezes repetiu para que o dito e o repetido se lhe encaixasse na cachola dura e obstinada: fora ela, Diva, sua falecida, sua preta, a mãe de Tovo, quem guiara os passos de Epifânia, levando-a de retorno à oficina para que ela tomasse o menino a seus cuidados.

 Homem sozinho, nunca soube criar filhos, Tovo não aprendera sequer a rir, mais parecia um bicho-do-mato do que uma criança.

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