Não era coisa desse mundo |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 317
Eis que um vento, abrupt o e abrasador, soprou do oriente, agitou as águas
do rio, cruzou a mata e no centro do descampado, entre o barracão e o armazém
do turco, se estendeu, denso mantel de poeira, e cortou o mundo em duas partes,
a de cima e a de baixo: numa a luz do dia, o calor da vida; na outra as sombras
da noite, o frio da morte.
E em seguida esse mantel de claridade e trevas
separadas já não era remoinho de poeira e sim uma aparição gigantesca e
apavorante.
A parte de baixo imersa na noite, vestida
de farrapos sujos de vômito e soltura, as pernas e os braços presos em
correntes imundas de ferrugem, a parte de cima refulgindo em lume, ateada em
chamas.
A figura completa, com a cabeleira de ouro
puro, o manto de estrelas e a coroa de conchas azuis, só veio a se mostrar mais
adiante, quando o horizonte se vestiu de púrpura e o egum, enfim liberto, nele
mergulhou e partiu para sempre e nunca mais.
Não era coisa desse mundo.
O negro Tição Abduim viu-o surgir do
vazio, espaventoso, crescer no ar, rodopiar no vento, levantar-se numa espiral
que tocava o céu. Encolheu-se no medo, curvou-se no respeito, fechou os olhos
para evitar a cegueira e pronunciou a saudação dos mortos: epa babá!
Mastigando frases em nagô, o egum lhe ordenou
abrir os olhos e se aproximar para ouvir o que ele tinha a lhe dizer.
Fazendo das fraquezas força, o negro andou
em sua direção.
Epifânia de Ogum, ekede apt a a acolher os encantados pois
já cumprira quatorze anos de feita,
poderia tê-lo visto com seus olhos de enxergar e de aperceber mas não estava
ali, sumira casa adentro em busca de Tovo sem que Tição, tomado de surpresa, a impedisse.
Edu, ocupado em limpar com o puxavante os
cascos da égua Imperatriz calçados com ferraduras novas, e o vaqueiro, portador
da montaria por ordem do coronel Robustiano de Araújo, apenas viram, com os
olhos de ver sem enxergar nem perceber, a poeirama levantada pelo inesperado
pé-de-vento, espantaram-se com a altura e a força do redemoinho.
Tição adiantou-se ao encontro do babá,
arrastando os pés: perdera o controle dos próprios movimentos e, à proporção
que se aproximava, sentia crescer um peso no cangote, uma lombeira, um cansaço
como se fosse morrer ali mesmo, naquela hora.
Era o egum de Diva que se manifestava, motivo
imperioso o fizera embarcar no vento de fogo do deserto: vinha do Além para
buscá-lo.
Já era tempo. A cabeça nas brumas da
vertigem, as pernas lhe faltavam.
Com dificuldade conseguiu alcançar um
pedregulho e nele se sentar obedecendo ao mando do babá.
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