Largo do Seminário |
HOJE É
DOMINGO
(Na minha cidade de
Santarém em 23/8/15)
O prédio apalaçado onde nasci e vivi os primeiros dez anos da
minha vida, tinha uma escadaria interior que descia em curva do primeiro andar,
que era a parte nobre da casa, até desaguar suavemente espraiando-se em degraus
largos e baixos no hall, junto à grande porta de entrada.
Aquela escada, imponente aos meus olhos de criança, revestida a
carpete de cairo fixada, degrau a degrau, por tubos de metal amarelo que bem
areados pareciam de ouro, enche a minha memória com os seus grossos corrimões em
madeira polida, brilhante, irresistíveis aos “escorregas” que deliciam os
meninos.
Mas na verdade, aquela escada não só enchia a casa como ganhou
um lugar de destaque no meu imaginário, por possuir outra particularidade pela
qual se me tornou querida.
Em baixo, do lado direito, fazia um cantinho com a parede num
espaço que dava para a frente do prédio e onde se rasgavam duas janelas de alto
a baixo com duas meias portas que se fechavam por dentro.
Esse cantinho, meio escondido mas bem iluminado, inacessível,
era o refúgio onde encontrava a paz que o turbulento do meu irmão raramente me
concedia para poder ler em sossego as minhas queridas revistas de aventuras, o
Mundo de Aventuras e o Cavaleiro Andante, cujos heróis da banda desenhada, recordo como se os tivesse a ver agora: o mascarilha Cisco Kid e o seu cavalo
branco e o mágico Mandrake.
A sensação que esse cantinho me proporcionava, de isolamento e
encontro a sós com os meus heróis, acompanhou-me por toda a vida. Nunca me
aconteceu dispensar esse “cantinho” e sempre o preferi á companhia dos outros.
Detesto as tertúlias, esgotam-me a paciência e não é fácil
encontrar pessoas que tornem agradável uma conversa.
A leitura do meu jornal faz parte do meu dia e para isso preciso
de estar concentrado que o mesmo é dizer, só.
Volto sempre ao cantinho das escadas do prédio onde nasci. Nele
descobri o prazer da minha própria companhia com um livro, um jornal, uma
revista.
Júlio Verne e Emílio Salgari recriaram a minha imaginação. Li-os
sempre em “cantinhos", e através deles, as florestas e os mares abriram-se para
mim muito antes de os ver, e a concepção errada dos heróis bons e dos vilões
maus, nasceram com eles.
Existe nas aventuras romanceadas um sabor gostoso que nos embala
o espírito, diferente da vida a sério, é verdade, mas nunca me foi difícil distinguir
uma da outra.
Também li livros realistas, dos que não fazem concessões, que não
transigem com os floreados cor-de-rosa, porque a vida é cruel, injusta,
traiçoeira e provoca mais dor e sofrimento do que alegrias, mas penso no meu
estado de espírito, sinto necessidade de o preservar e houve até uma fase da
minha vida que para provocar bons sonhos tinha sempre na mesa de cabeceira para
uma última leitura do dia, livros da colecção do Obelix, o humor mais inteligente
de toda a banda desenhada a garantir noites descansadas e sonos bem dormidos.
Preparemo-nos, meus amigos porque, com a velhice, a solidão e o
isolamento vão chegar inevitavelmente. Para aqueles que gostam, e fizeram disso
um estilo de vida, não vai haver mais amigos à vossa volta.
Restamos nós, no nosso cantinho, com os nossos pensamentos e as
nossas leituras, sem dispensar o jornal diário porque, enquanto cá estivermos, é
nossa obrigação não esquecer o mundo à nossa volta.
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