José Eduardo Agualusa - escritor angolano. |
Raças impuras
Os portugueses são, de fato, essa mistura antiga de
árabes, judeus e negros
Assim como os brasileiros gostam de contar piadas de portugueses, os portugueses gostam de contar piadas de alentejanos. Os alentejanos são, digamos assim, os portugueses dos portugueses. Amo o Alentejo. Tenho uma enorme simpatia pelos alentejanos. Se tivesse nascido em Portugal gostaria que fosse em Évora. As largas planícies alentejanas lembram, até certo ponto, as savanas africanas. O Alentejo é o único lugar onde Portugal parece grande.
Durante séculos, o sul
de Portugal recebeu escravos negros. Em 1761, ano em que o Marquês de Pombal
determinou o fim da entrada de escravos em Portugal, ainda haveria pelo menos
cinco mil a trabalhar nas planícies alentejanas. Persistem sinais dessa
presença em alguma toponímia e até em certos nomes de família, de origem banto.
A influência árabe,
essa, é evidente. Inclusive na música. O fado, aliás, está tão próximo de
alguma tradição árabe que há quem junte as duas e é como se sempre tivesse sido
assim. Ouçam por exemplo o jovem Ricardo Ribeiro, cantando, em árabe e
português, na feliz companhia do alaúde do libanês Rabih Abou-Khalil.
Ouçam a
seguir a cantora tunisina Amina Alaoui em “Arco-íris”, um dos mais belos discos
de fado que eu conheço.
Pensei nisto tudo no
aniversário de Zambujo, enquanto um grupo de alentejanos, numa mesa próxima,
começava a cantar. Aquele pátio belíssimo podia ser em Tanger. Podia ser em
Marrakech ou em
Casablanca.
Lembrei-me de um
episódio que me contou Mário Soares. Um dia, num encontro que o antigo
presidente português teve com Yasser Arafat, para discutir o interminável
conflito israelo-árabe, este chamou-lhe a atenção para a herança árabe da
Península Ibérica: - “Vocês, portugueses, têm de nos apoiar. Afinal, vocês são
árabes”:
- “É verdade.” Reconheceu
Soares, e logo acrescentou: - “Mas também somos judeus”.
Os portugueses são, de
fato, essa mistura antiga de árabes, judeus e negros. Os brasileiros são a
mistura, ainda mais desvairada, de portugueses, africanos, índios, libaneses,
japoneses etc. Um português que odeie “árabes” é um português que se odeia a si
próprio. Um neonazi português ou brasileiro é o mais esdrúxulo, ridículo e
repulsivo dos oximoros. Contudo - pasme-se! - eles existem.
Os comentários nas
redes sociais, ou nos jornais on-line, são uma versão moderna dos antigos
gabinetes de curiosidades, ou quartos de maravilhas, salas onde, nos séculos
XVI e XVII, os fidalgos endinheirados acumulavam coleções de bizarrias,
sortilégios e impossibilidades, como sereias empalhadas, cornos de unicórnios
ou lágrimas de crocodilo.
Nas caixas de comentários dos jornais, os prodígios,
deformidades e monstruosidades não são físicos, mas ideológicos e morais. As
pessoas exibem ali, com um estranho orgulho, as suas piores deformidades
morais, a estreiteza aflitiva dos espíritos, as ideias mais monstruosas. Ali
está a exaltada patricinha carioca, defendendo a interdição das praias da Zona
Sul aos negros e pobres, ou o operário lisboeta que quer destruir a mesqui ta de Lisboa. Há de tudo.
Em Dresden, na
Alemanha, um grupo de neonazis colombianos foi espancado por neonazis alemães
quando tentava juntar-se a uma manifestação contra a entrada de refugiados
sírios.
Um deles queixou-se amargamente: “Já não basta que na Colômbia nos
chamem morenonazis. Nós somos de raça pura, sim, apenas escurecemos um pouco
por causa do clima”.
É a história do ratinho
que achava que era um gato, até que um gato o comeu.
António Zambujo fez 40
anos. Para festejar o acontecimento, juntou um grupo de amigos num pátio de
Lisboa.
Quando cheguei, o rio Tejo, lá ao fundo, ainda guardava o último fulgor
do dia. Era como um incêndio desaguando na escuridão. A escuridão era o mar.
Conheci António Zambujo em
São Paulo. Foi Marília Gabriela quem pela primeira vez me
falou dele: - “Você já ouviu um fadista português chamado António Zambujo?” - perguntou-me.
Disse-lhe que não: - “Não existe. Se existisse eu saberia”. Então
ela ofereceu-me um disco, era o “Outro sentido”, de 2007, e eu fiquei
maravilhado.
Não sabia que havia em Portugal alguém a fazer música assim.
Tentei justificar a minha ignorância: “Você disse-me que era um cantor
português e este António é alentejano”.
José Eduardo Agualusa
PS - O meu "companheiro" diário, deste blog, Jorge Amado, grande escritor, potencial Prémio Nobel da Literatura, é o expoente máximo da riqueza e diversidade cultural.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home