(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 6
DE
ELISA, LINDA DE MORRER, DIANTE DO ESPELHO, E DO MARIDO ASTÉRIO, BOM DE TACO –
CAPÍTULO ONDE NADA ACONTECE
Quando no dia
seguinte a marinete de Jairo buzinou na curva próxima da cidade, Elisa, sentada
à mesa antiga, quem sabe de valor, a servir de penteadeira, terminara de passar
batom nos lábios e sorrio para a imagem reflectida no espelho barato pendurado
na parede.
Achou-se bonita. A negra, bravia cabeleira, agora cuidada, solta
sobre os ombros, emoldura-lhe a face pálida, o langor dos olhos, a boca de
lábios gulosos, acentuados pelo batom.
Linda de morrer, como diz, ao
referir-se a estrelas de rádio, teve, cinema, o admirado locutor Mozart Cooper
– pronuncia-se Cu…u…per - , voz de veludo nas ondas hertzianas a embalar os
corações solitários. Coração solitário, linda de morrer.
Durante alguns minutos esqueceu-se de
tudo quanto a afligia e ensaiou poses e trejeitos, imitados das cenas das
foto-novelas: um muxoxo com os lábios, olhar apaixonado, sorriso tentador, a
ponta da língua a surgir entre os lábios, vermelha e húmida.
Beijar a quem? Num
gesto cansado encolheu os ombros, os olhos cobriram-se de sombra. Volta a
pensar na carta, busca tranqui lizar-se:
está chegando na mala do correio, trazida pela marinete, de hoje não passa. E
se não chegar?
Na véspera, na mesa do almoço,
Astério, comilão e apressado, a boca cheia, mastigando feijão e palavras
repetia pergunta e lamúria:
- Porque tanta demora? Logo em
Novembro, mês de pouca venda, quase nenhuma. Que diabo pode ter acontecido?
Elisa trancara os lábios, se lançasse
a suspeita a queimar o peito o marido entraria em pânico.
Osnar, desocupado, faz ponto na loja, o cigarro de palha pendurado no lábio.
Infalível aos sábados, quando o movimento cresce por causa da feira.
Após
vender a farinha, a carne-de-sol, o feijão, as frutas, o cultivo das roças e o
barro cozido em pequenos fornos rudimentares - moringas e quartinhas, cavalos e
bois, jagunços e soldados, o padre cura e os noivos de mãos dadas, potes e
panelas - , os sitiantes e roceiros enchem a loja a comprar fazendas, sapatos,
calças e camisas, qui nqui lharias, vez por outra um rádio de pilha.
Na moita, equi librado
numa velha cadeira, Osnar espreita as caboclas novas, puxando conversa quando
lhe parece valer a pena. Nos sábados, o moleque Sabino ganha cinco cruzeiros
para ajudar, atendendo a maioria dos rudes fregueses – cinco cruzeiros e o que
rouba no troco.
Se Eliza contasse a conversa com
Perpétua, Astério seria capaz de ter um daqueles vexames repetidos a cada
aperto maior de dinheiro, a cada problema com os fornecedores; suores frios,
fraqueza nas pernas. Tontura, vómitos. Recolhe-se à cama, batendo o queixo,
tiritando, a loja entregue a Sabino. Só Osnar consegue levantá-lo, arrastando-o
para o bilhar, no Bar dos Açores, de seu Manuel Português.
No bilhar transforma-se, vira outro
homem. Ri e graceja, arrota valentia, aposta sem medo, manda desafiar Ascânio,
certo da vitória. Bom no taco. No taco do bilhar, somente no bilhar taco de
ouro, surpreende-se Elisa a resmungar.
Censuráveis resmungos, pensamentos
ruins, surgiam assim de repente, perseguiam-na os malditos, cruz credo.
A face pensativa no espelho. Linda de
morrer, ali perdida, a envelhecer naquelas ruas paradas, à espera da carta e do
cheque. Não fossem o rádio de pilha e as revistas, que seria de Elisa?
Se revelasse a Astério o tema
debatido com Perpétua, a probabilidade – para a irmã, a certeza – da morte de
Tieta, ele vomitaria o feijão, o arroz, a carne, os pedaços de manga, ali mesmo
em cima da mesa do almoço. Tirando o bilhar, um molengas, sem ânimo, sem
ambição, sem conversa, sem alegria.
As raras prosas, as poucas risadas
provinham ainda do bar, picantes histórias dos parceiros, de Seixas e Aminthas,
raramente Fidélio, reservado de natureza e por cálculo, quase sempre Osnar,
abastado, obsceno e mulherengo.
As histórias de Osnar, entre as quais figura o
notável caso da polaca, são de morrer de rir, em geral têm a ver com o
descalibrado dos seus órgãos sexuais.
Estrovenga de jumento, afirma
Astério, distanciando as mãos para indicar a medida espantosa: daqui para maior.
O cansado motor da electricidade
deixa de trabalhar às nove da noite, marcando a hora de dormir, confirmada
pelas badaladas do sino da Matriz.
Astério conclui a partida, encosta o taco,
recolhe ou paga as apostas, toma o caminho de casa. Vez por outra, se Elisa
ainda não pegou no sono, Astério, ao despir-se, repete a mesma frase, prólogo
do caso a narrar: Acontece cada uma!
Osnar ou Aminthas, Seixas ou Fidélio,
fosse qualquer dos quatro o personagem, fosse outra figura da cidade, o enredo
era quase sempre escabroso envolvendo mulher e cama – cama ou mato na beira do
rio.
Elisa ouve em silêncio, tensa, atrevendo-se de raro, a pedir detalhes, tão
necessários no entanto à construção do imaginado mundo em que se trancara para
subsistir, onde cada elemento importava; a grandeza de Antonieta, o postal de
Buenos Aires, o perfume no envelope, as tramas de Seixas, os segredos de
Fidélio, as patifarias de Aminthas, a anatomia de Osnar.
Durante o dia, o rádio
ligado sem parar, Elisa passa e remenda roupa, lava pratos, cozinha, lê e relê
revistas, visita dona Carmosina no Correio, suporta, após o jantar, a
lengalenga da vizinha, dona Lupicínia, cujo marido se mandara há mais de um
lustro para as bandas do sul da Baía e não tinha previsão de regresso, vai ver
não volta nunca.
Linda de morrer, só mesmo para
morrer, para que outra coisa, qual? A boca ante o espelho abre-se ávida para o
beijo. Qual beijo? Elisa levanta-se, ai quem lhe dera possuir um espelho onde
pudesse se ver de corpo inteiro! Linda de morrer, no fino da moda.
Afinal, pergunta-se a encolher os
ombros novamente, por que gasta esse tempão a pintar-se, em ajeitar a negra
cabeleira, em fazer-se tão elegante no vestido restaurado, presente da Tieta
como todos que possui, cada qual de melhor fazenda e de padrão mais moderno –
usado mas pouco, quase novos.
Para que tanto apuro, tanto cuidado
com a maqui agem, para que o decote a
mostrar os ombros, o nascer dos seios?
Para atravessar as ruas desertas de
passantes, perceber o peso do olhar do árabe Chalita, a bigodaça de sultão, a
barba por fazer, eterno palito entre os dentes, dono do cinema Tupy e da
sorveteria, velho e descuidado ou sentir sem ver a mirada matreira do moleque
Sabino fixo no meneio das ancas da inacessível mulher do patrão, ouvir o
pestilento assobio do Bafo-de-Bode, mendigo e bêbado?
Tão podre e miserável,
pode-se dar a todos os atrevimentos sem temer represálias. Esses três infelizes
e acabou-se.
Além disso, um boa-tarde dona; um chapéu levantado em muda
saudação; a bênção do vigário e a incontida inveja das mulheres: até parece que
se vestiu para um baile, querida discreta e comedida
esposa honesta e
virtuosa, ao passar, Elisa recolhe no decote o cúpido olhar do levantino: ao
vê-la certamente recorda tempos de antanho e corpos de mulheres; a cobiça do
moleque acentua-lhe o requebro da bunda, assim de noite Sabino sonhará com ela.
Não despreza sequer o assobio fétido do esmoler. Quanto à inveja das mulheres,
tem igualmente merecimento e sabor, Modesta, Elisa responde: vestido enviado
por minha irmã Tieta, é dela o gosto e a elegância, hei-de botar fora?
Louvam então
em coro a ausente Antonieta, irmã generosa, filha exemplar, a infalível ajuda
mensal, os presentes régios – régios, sim senhora, cada vestido desses vale um
dinheirão!
Elisa recomenda à pequena Araci
atenção na casa, fecha a porta da rua, dirige-se para o correio.
Atravessará a
feira, passará pelo árabe, pelo moleque, pelo maluco, pelas comadres no adro da
Igreja.
O rosto sério, como cumpre a uma senhora casada. O coração apertado, lá
dentro a certeza de que a carta não chegou.
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