Linda, na sua nudez de mulher |
TIETA
DO AGRESTE
(Jorge Amado)
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 5
Praia
de Mangue Seco
Pois já lá vai mais
de seis meses que ele morreu e até agora o padre não viu a cor do dinheiro.
Está depositado na mão do juiz, em Esplanada, porque os parentes botaram
questão, com advogado e tudo.
Doutor Almiro disse que, pela lei, metade é
deles. Daí eu fui perguntando, com não quer nada…
- Tu quer dizer que quando uma pessoa morre, metade do que ela tem fica para
parentes?
- É isso mesmo…Perpétua busca no bolso da saia um lenço para enxugar o suor fino
na testa com o lenço aparece um terço de contas negras.
- Quer dizer que, se tu morrer, metade do que é teu fica para mim e para o pai…
- Tu não presta atenção no que se fala. Só quando o falecido não tem filhos; é
o caso dela mas não o meu. O que eu deixar quando morrer vai ser repartido
entre Ricardo e Peto, meus filhos, meus únicos herdeiros.
Já foi assim quando o
Major morreu – faz o sinal da cruz, eleva os olhos murmurando Deus o tenha em
sua glória – a herança foi dividida, metade para mim, metade para os meninos. O
doutor Almiro…
- Tu perguntou isso também?
- Sempre vale a pena saber.
- Tu pensa que ela morreu e que o marido não diz nada para ficar com tudo?
- E não pode ser? Porque ela nunca deu o endereço para nós? Mandou a gente
escrever para caixa-postal, onde já se viu?
Proibição do marido, para a gente não saber. Você sabe o sobrenome dele? Nem
eu. É Comendador para cá, Comendador para lá, e acabou-se, nada de sobrenome.
Por quê? Tu não atina nestas coisas mas eu tenho pensado muito nisso e tirei as
minhas conclusões.
Também Elisa havia atentado naquelas esqui sitices.
Em sua opinião, porém, outro era o significado da falta de endereço, de
sobrenome, da ausência de maiores detalhes sobre a vida e família: Antonieta
perdoara os agravos, não guardara mágoa, mas não esquecera o passado, não
queria maior aproximação com os parentes, gente mesqui nha
do interior, não desejava misturá-los a seu mundo maravilhoso.
Ajudava pai e
irmãs como cumpre às filhas quando em boa situação. Obrigação cumprida, a
consciência em paz, ponto final: reserva e distância. Se querem saber, faz ela
muito bem!
Era isso e nada mais, não passando o resto de invenções da Perpétua,
a cachola sempre a pensar malfeitos e desgraças. Se Antonieta decidisse deixar
alguma coisa para o pai e as irmãs, após a morte, tomaria as medidas
necessárias com antecedência, estaria tudo disposto e estabelecido.
- Não acredito, não. Se ela tivesse morrido, a gente havia de saber.
Termina de botar a mesa, fica parada, o olhar perdido:
- Está viajando, gozando a vida. Toda vez que sai a passeio, a carta atrasa.
Atrasa mas chega. Lembra quando foi a Buenos Aires e mandou aquele cartão tão
bonito? Vida é a dela: viagens, passeios, festas.
Tieta é muito boa de pensar
na gente no meio de tanta animação. Se fosse comigo que tivesse acontecido,
nunca mais, nunca mais mesmo, eu havia de dar notícias.
Volta a vista para Perpétua, agora a passar as contas do terço:
- Vou dizer uma coisa, acredite se qui ser.
Mesmo se fosse para herdar o dinheiro todinho, sem ter que dividir com ninguém,
nem assim eu desejo a morte dela.
- E quem deseja? – Perpétua suspende a reza, a conta negra entre os dedos:
- Mas senão chegar mais cartas, então é sinal que Antonieta morreu. Aí eu vou
mover mundos e fundos até descobrir o marido dela e tomar a minha parte.
- Tu acaba lesa de pensar tanta maluqui ce.
Ela está passeando, se divertindo. Por que agourar criatura tão direita? A
carta não passa de amanhã.
- Tomara mesmo. Fui em casa do velho, ele está nos azeites. Sabe o que me
perguntou? Se Astério não tinha metido a mão no dinheiro e pago alguma dívida,
como fez daquela vez que usou o cheque para resgatar a letra vencida.
O velho
pensa que a gente vive roubando ele. – Volta a dedilhar o terço, os lábios sem
pintura movem-se em
silêncio.
- Tu sabe que, se ele não pagasse a letra, a loja ia à falência. Tu sabe, o Pai
sabe…
Não cresce o tom de voz, monótono:
- Mas que a gente vive roubando, ah!, isso vive, não adianta tu ficar aí
sentada de terço na mão, mastigando padre-nosso com esse ar de santa.
- Nunca toquei num tostão do velho…
- Nem ele ia deixar. É dela que a gente rouba. Para que ela manda o cheque
todos o mês?
- Para as despesas do velho.
- E para que mais?
- Para ajudar na educação dos sobrinhos.
- Isso mesmo. Para ajudar na educação dos filhos da gente. O meu não chegou a
completar dois anos e eu nunca mais peguei menino. Nunca mais, Deus não qui s…
Os olhos vão da sala de jantar para o quarto de dormir, pela porta aberta vê a
cama de casal ainda por arrumar. Deus não qui s?
Nem para isso Astério serve… A voz neutra prossegue:
- E tu? Será que tu mandou dizer a Tieta que Peto está no Grupo Escolar, não
paga nem um vintém?
Que padre Mariano arranjou com o Bispo o seminário de graça
para Cardo? Eu sei o que tu mandou dizer: o preço da Escola da Dona Carlota, a
mensalidade do seminário. Isso, sim, tu mandou dizer, pró resto boca trancada.
Por que tu puxa de novo essa história da letra que Astério resgatou se cada um
de nós tem seus podres?
- Foi o velho que falou, só repeti o que ele disse.
- Um dia eu ainda tomo coragem, escrevo a ela contando a verdade: que não tenho
mais filho nenhum, o que tinha a doença levou mas que a gente precisa tanto do
dinheiro que ela manda, mas tanto a ponto de me ter faltado forças para
comunicar a morte de Toninho.
Era capaz de ela ficar com pena e mandar até mais
do que manda. Só que não tenho coragem de arriscar…Por que a gente é assim,
Perpétua? Por que a gente não presta? É por isso que ela não quer aproximação,
não manda endereço, ajuda de longe.
A voz se faz pesada, áspera, quase desagradável como a de Perpétua:
- E ela age muito bem porque se eu tivesse o endereço…
Os olhos fitam o vazio:
- Ah!, se eu soubesse o endereço já tinha arribado para lá!
Perpétua chega ao fim do terço, beija a pequena cruz:
- Tem hora que tu nem prece mulher feita e casada, fala o que não deve. O que
tu precisa é ir ajudar na igreja em vez de ficar lendo revista e ouvindo rádio,
gastando o tempo com essas porcarias.
Elisa deixa cair os braços, a voz novamente neutra:
- Amanhã, logo que a marinete chegue, passo no correio. Vem amanhã tu vai ver.
- Deus te ouça. Com a desculpa da doença, Lula Pedreiro há três meses não paga
aluguel. Agora mandou a chave, foi morar com o filho, deixou a casa imunda, um
chiqueiro. Para alugar vou ter que dar pelo menos uma demão de cal.
- Tu te queixa sem razão. Mora em casa própria e ainda tem mais duas para
alugar, fora a pensão do falecido. A gente, senão fosse pelo dinheiro que ela
manda pró anjinho, nem numa sessão de cinema podia ir.
- Amanhã, me avisa logo se chegou ou não. Se não chegar, vou tomar minhas
previdências.
- Por que não fica para almoçar? O que dá para dois dá para três.
- Eu? Comer carne em dia de sexta – feira? Tu bem sabe que é pecado. É por isso
que vocês não vão para a frente. Não cumprem a lei de Deus.
Ergue-se da cadeira, guarda o terço no bolso da saia. Toda em negro, a blusa de
mangas compridas, sem decote, fechada no pescoço, o coque alto, coberto pela
mantilha, o rosto severo, virtuosa e devota viúva.
Benze-se ao ouvir o sino da
Matriz nas badaladas do meio – dia, encaminha-se para porta. Na rua deserta,
ressoam os passos de Astério. O mormaço sobe do chão, desce do céu.
Elisa suspira, dirige-se para a cozinha.
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