Linda, na sua nudez de mulher |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 4
CERIMINIOSO CAPÍTULO
ONDE SE TRAVA CONHECIMENTO COM TRÊS IRMÃS, A POBRE, A REMEDIADA E A RICA;
ESTANDO A ÚLTIMA AUSENTE – QUEM SABE PARA TODO O SEMPRE; ONDE SE CONHECE DA
CARTA MENSAL E DO CHEQUE IDEM, ANSIOSAMENTE AGUARDADOS, SOBRETUDO O CHEQUE,
COMO É NATURAL, E TAMBÉM DE PEQUENAS MISÉRIAS E MÍNIMA ESPERANÇA, NA HORA DO
MORMAÇO; ONDE, EM RESUMO, SE COLOCA INQIETANTE PERGUNTA:
- TIETA ESTÀ VIVA OU MORTA? - SINGRA OS MARES EM CRUZEIRO DE TURISMO
OU JAZ EM CEMITÉRIO
PAULISTA?
Empertigada na cadeira, as mãos
cruzadas sobre o peito magro, toda em negro dos sapatos ao xaile, coberta assim
de luto fechado desde a morte do marido, Perpétua baixa a voz, lança a fúnebre
hipótese:
- E se sucedeu alguma coisa com ela?
– adianta a cabeça para onde está a irmã, sussurra: - E se ela bateu a
caçoleta? – mesmo sussurrada, a voz, sibilante e ríspida , é desagradável:
- E se ela morreu?
Elisa estremece, solta o pano de
prato, derrotada pelo mau presságio. Há dois dias e duas noites longas tenta
arrancar da cabeça esse maldito pressentimento a persegui-la, a roubar-lhe o
sono, a deixá-la com os nervos em ponta.
Perpétua descruza as mãos, alisa a
saia de gorgorão bem passada, ratifica com um movimento de cabeça; não fez uma
pergunta e sim uma afirmação. De comprovação fácil, aliás:
- Estamos a vinte e oito,
praticamente no fim do mês. A carta sempre chega por volta de cinco, nunca
passa de dez. Para mim, ela bateu a caçoleta.
Mesmo no desalinho da manhã de
ocupações domésticas, o rosto de Elisa é bonito: morena de tez pálida, olhos
melancólicos, lábios carnudos.
Sob o desleixo do vestido velho e amarfanhado,
chinelas gastas, ergue-se o corpo esbelto, de ancas altas e seios rijos. Um
lampejo de curiosidade brota nos olhos assustados.
Elisa busca na face da irmã
outro sentimento além da preocupação pelo dinheiro. Não encontra: a proclamada
morte de Tieta não aflige Perpétua, teme somente pela sorte do cheque.
A
cessação da remessa mensal assusta igualmente Elisa: não só perderiam a ajuda
indispensável como teriam de sustentar o pai e a mãe, onde arranjar o
necessário? Um horror, Deus não permita!
Um horror, sem dúvida, porém havia
mais e pior. Ao calafrio de medo sucede a tristeza, um aperto no coração. Se
ela morreu, então tudo se acabou para sempre, não somente o cheque, também a
ténue esperança; sobrará apenas o vazio. Essa irmã Antonieta – meia irmã,
aliás, pois Elisa nascera do segundo e inesperado casamento do velho Zé Esteves
– de quem não conserva lembrança, a respeito de quem sabe tão pouco, é a razão
de ser de Elisa.
Nos últimos anos, sobretudo após o
casamento, começara a idealizar a figura da ausente, espécie de génio bom,
heroína de conto da carochinha, imagem fugidia, quase irreal, a se fazer
concreta no auxílio mensal, nos esporádicos presentes.
Reunindo frases ouvidas, narrativas
de antigos enredos, comentários do pai e da mãe; a letra larga e redonda nas
pequenas cartas - parcas em palavras e notícias, reduzidas às mesmas perguntas
pela saúde dos velhos, das irmãs, dos sobrinhos, mas não secas e frias,
contendo, além do cheque, abraços e beijos – o perfume ainda a evolar-se do
envelope após tantos dias de correio; os embrulhos de roupa usada, quase nova; o
título de comendador ostentado pelo marido; a fotografia na revista, Elisa
construíra, pouco a pouco imaginário retrato da irmã, fada alegre, bela e
bondosa, habitando um mundo rico e feliz. Nessa visão pensa e nela se apoia
quando sonha com outra vida, mais além da pasmaceira e do cansaço.
Morta
Antonieta, que restará a Elisa? As revistas de telenovelas, nada mais. Nem
isso, meu Deus!
Onde os níqueis, sobrados das
despesas, com que comprá-las?
Tristeza por tudo quanto perderá, o
dinheiro mensal, os presentes, o devaneio, o sonho, mas também tristeza
simplesmente pela morte da irmã; gostará tanto de alguém quanto gosta dessa
meia-irmã que não conhece?
Reage, na necessidade de conservar pelo menos a
esperança: Perpétua imagina sempre o pior, boca de agouro.
- Se ela tivesse morrido, a gente já
tinha sabido, alguém havia de dar a notícia. Em casa dela tem nosso endereço,
todo o mês ela escreve, não é?
Haviam de avisar… - há dois dias, na labuta da
casa, na cama de insónias, repete estes argumentos para si mesma.
- Avisar? Quem? Só se o marido dela e
a família dele forem malucos.
- Malucos? Não vejo porquê.
Perpétua estuda a irmã em silêncio, a
se perguntar se deve ou não contar, decide-se por fim, de qualquer maneira ela
terá de saber:
- Porque, com a morte dela, a gente
tem direito a uma parte da herança. Nós três: o velho, eu e você.
Elisa volta a enxugar os pratos, de
onde Perpétua tirara aquela ideia de herança? Cada bobagem!
- Quem vai herdar é o marido dela, o
Comendador. Por que a gente havia de herdar? Pró pai, pode ser que ela deixe
alguma coisa, tem sido boa filha, boa até de mais. Mas pra nós duas, por quê?
Quando ela saiu de casa, eu tinha menos de um ano. E tu, não foi por tua culpa
que ela foi embora?
- Não foi tu que xeretou ao pai?
Abriu o bico, ele quebrou a pobre no pau, tocou ela rua afora, não foi? Mãe me
contou como se deu e Pai confirmou, disse que tu foi a culpada.
- Dizem isso agora, para adular.
Depois que ela começou a mandar dinheiro, virou santa. Por que tua mãe não
tomou as dores na ocasião? Quem foi que deu a surra, quem botou ela pra fora de
casa? Eu ou o Velho?
Elisa estende sobre a mesa a toalha
manchada de azeite, de feijão, de café.
- Astério tem mão podre, não sabe se
servir sem derramar caldos e molhos, o infeliz. Encolhe os ombros não responde
à pergunta de Perpétua, o pai e a irmã que decidam entre eles de quem a culpa;
dela, Elisa, é que não foi, não completara um ano de idade quando denúncia,
expulsão e fuga aconteceram.
Perpétua semicerra os olhos gáseos,
por que Elisa se empenha em recordar o passado? A própria Antonieta não
esquecera, há muito, agravos e injustiças?
Não envia dinheiro, presentes? Não
ajuda nas despesas? Ademais, há males que vêm para bem, não é mesmo?
Se ela não
tivesse sido posta no olho da rua, em vez de partir para o Sul e triunfar em S. Paulo , bem casada,
cheia de dinheiro, feliz da vida, teria ficado ali, naquele buraco, vegetando
na pobreza, sem direito a noivado e casamento pois a história com o caixeiro
viajante logo se tornara de domínio público. Sem direito a nada, mera criada do
pai e da madrasta.
- Se tu não lembra essas coisas por
que tu há de lembrar?
- Não fiz por mal, só para mostrar
que ela não tem motivo para deixar herança para nós duas.
- Não depende dela querer ou não
querer… - Perpétua descerra os olhos, compõe a saia, retira invisível cisco da
blusa: - Quando ela morrer, metade da fortuna fica para o marido e, como ela
não tem filhos, a outra metade é dividida entre os parentes, os parentes
próximos, o Velho e nós, o pai e as irmãs.
Como é que tu sabe?
- Doutor Almiro me disse…
- O promotor? E tu foi falar com ele?
- Propriamente falar, não falei. Ele
estava conversando com padre Mariano, eu e outras zeladoras de junto, ouvindo.
Estavam falando da herança de seu Lito, que deixou o dinheiro todo para o padre
dizer missa pela salvação da alma dele na Igreja da Senhora Sant’Ana.
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