Linda, na sua nudez de mulher |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 14
ENQUANTO O LEITOR RESPIRA; O AUTOR SE APROVEITA E ABUSA
Boa ideia, sim, meritória. Capítulos longos cansam, tornam a narrativa pesada e
enfadonha, conduzem ao desinteresse e ao sono. Uma pausa, abre, inclusive,
tempo e espaço para necessárias explicações sobre detalhes que os personagens
torcem, modificam ou simplesmente suprimem, ao sabor de interesses variados,
confessáveis ou escusos, mas cujo conhecimento cabal é direito sagrado do
leitor – para saber ele paga os preços actuais, incríveis!
Carmosina é useira e vezeira em guardar segredos, em baralhar pistas, em
impedir a circulação completa ou parcial de determinadas notícias, causando
grave dano às xeretas do adro da igreja e à população de Agreste em geral pois
quem não se mete na vida alheia, não pergunta, não conta, não comenta?
Se excepção existe, não conheço. Falar da vida alheia é a diversão principal do
lugar, grosseria e mau carácter de uns, arte e subtileza de outros.
Intolerável grosseria de Bafo de Bode, rebotalho da sociedade, apodrecido por
dentro e por fora. Quando do grande porre semanal, aquele que começa na noite
de sábado, após a feira onde esmolou ao sol o dia todo e prossegue pelo
Domingo, esse detrito malcheiroso desce a rua aos trancos e barrancos, a
enlamear a honra de distintas famílias, a proclamar maledicências, injúrias e
infâmias, desgraçadamente quase sempre comprovadas:
- Cuidado com os chifres, Chico Sobrinho, estão crescendo demais. Tua mulher,
Ritinha, vive dando na beira do rio…não vou dizer a quem, não sou dedo duro.
Nem ele, nem eu e daí? Arte subtil na voz antiga de dona Milú, mãe de
Carmosina, uma santa, quem duvida?
- Estão dizendo que Ritinha anda de namoro com seu Lindolfo, mas deve ser
mentira, o povo gosta de falar. Ritinha paga por ser muito dada, às vezes
demais…o génio dela é esse, não tem culpa.
A população está cansada de saber que Ritinha e Lindolfo, tesoureiro da
Prefeitura, se encontram nos esconsos do rio. O melhor é fazer como Chico
Sobrinho, para palavras loucas ouvidos moucos, quem dá atenção a Bafo de Bode?
Voltemos, porém, a Carmosina e ao comandante Dário pois deles se trata, entre
eles existe uma trama. Não, nada do que estão pensado!
Como diz Osnar,
apontando o exemplo do comandante, não há criatura perfeita. Pelas frestas das
janelas sem-abertas, olhares lânguidos ou ardentes, conforme idade e fogo,
acompanham-lhe o passo gingado de convés quando ele desfila em Agreste, vistoso,
todo feito de músculo, corpo jovem, rosto maduro e vivido, cabeleira rebelde e
grisalha; pode-se dar ao luxo de escolher, dá-se ao desperdício de ignorar a
todas elas, sem abrir excepção sequer para Carol, a amásia de Modesto Pires,
obra-prima de Deus e da fusão das raças.
Monógamo declarado, o comandante;
amoroso da esposa, dona Laura, e Carmosina é sua amiga fiel.
Amiga fiel, aí o XPTO da questão. Para proveito dos leitores, utilizo a pausa e
tento decifrar o enigma.
Vou direito ao assunto: qual a patente do nosso personagem, quantas divisas
ostenta na farda esquecida no fundo do armário? Ninguém sabe, a todos basta o
título de comandante e foi isso que lhe disse exactamente dona Carmosina quando
ele, honrado e modesto, qui s
proclamar a verdade. Ela, a responsável. Tanto fala como esconde, tudo depende.
Que Dário de Queluz, valoroso filho de Agreste, pertenceu à Marinha de Guerra,
dando realce e lustre ao torrão natal, nada mais certo, sobram as provas; fulge
uma delas no bangalô em cima da escrivaninha, ao lado dos trabalhos feitos em
coco pelo comandante – medalha de ouro, recordando acto de bravura, reluz sob o
vidro da redoma.
Que entrou modestamente de marinheiro, rapazola emigrado em
busca de trabalho, todos sabem. Que subiu, degrau a degrau, pelo esforço e pelo
estudo, durante os vinte anos de vida militar, também é facto de conhecimento
público. Mas subiu até onde? Eis o busílis: quando, despida a túnica, retornou
aos ares pátrios e puros, alguém logo o proclamou Almirante. Ele recusou o título
e a bajulação:
- Não cheguei lá, quem sou eu? Ao demais Almirante é título que só existe em
tempo de guerra.
Disseram-no, então, Comandante e se curiosidade houve em saber até onde
chegara, não se manifestou, ele impunha respeito e era um atleta.
Comandante, título perfeito em qualquer caso, em qualquer posto.
Arte subtil, a vida alheia. Um dia, os dois conversando na repartição,
Carmosina perguntou, como por acaso:
- Comandante, me esclareça. Na Marinha de Guerra, os praças podem chegar ao
posto de Capitão-de-fragata no quadro de Oficial Auxiliar da Armada, não é
certo?
Percebeu Dário a subtileza; a curiosidade a corroer o coração da amiga. Sorriu,
tinha um sorriso sem malícia de homem bom e direito, e respondeu:
- Não subi tanto, minha boa Carmosina. Cheguei apenas a…
Ela tapou-lhe a boca com a mão:
- Baixinho, que mais ninguém ouça…
E por quê?
- Os outros pensam que sim, que chegou e ultrapassou, estão orgulhosos disso.
Por que dissuadi-los? Comandante, basta e sobra.
Apurou o ouvido para ouvir, ouviu e acabou-se. Comandante agora a comandar mar
e vento nos cômoros de Mangue Seco, desnecessários se tornam quaisquer
detalhes, dragonas e ordens de serviço.
Carmosina sabe, quanto basta, a
confidência não passou dali, nem mesmo à velha Milú ela contou. Contar à mãe?
Estão loucos? No dia seguinte, Agreste inteiro saberia.
Eis aí em pratos limpos o que desejei esclarecer, aproveitando a interrupção do
capítulo e terminando por escrever mais um, perdoem. Qual o posto de facto
alcançado pelo Comandante?
Ah! isso não sei dizer, somente Carmosina sabe e,
egoísta, faz boca de siri, esconde a informação. Se algum dos senhores por
acaso a obtiver, seria favor comunicar-me.
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