quinta-feira, novembro 26, 2015

Linda, na sua nudez de mulher
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº 15
















                                                                                       
                                                                                                






CONTINUAÇÃO DO CAPÍTULO INTERROMPIDO

Quando Perpétua casou, dona Carmosina teve um alento de esperança. Se Perpétua, mais velha, mais feia – pois simpatia também marca ponto em concurso de miss – mas com aquela cara de prisão de ventre crónica, sem graça, ressentida, encontrara quem a quisesse, quem lhe pedisse a mão em casamento e a levasse ao altar de véu e grinalda, figura ridícula!, cabia a Carmosina, mais moça, inteligente, culta, cultíssima! risonha e cordial, ao demais cozinheira de mão cheia, o direito a sonhar, a não cair em desespero.


Ah!, Major Cupertino Batista existiu um só, milagres não se repetem.

Reformado por motivos de saúde, cinquentão asmático e cardíaco, curto de entendimento, duro de cabeça, obtuso, um bobo alegre, nem por tudo isso partido desprezível.

 Solteiro, tinha economias, reservas monetárias e físicas: ao partir para o reino dos céus deixara Perpétua com dois filhos e herdeira de três casas, além da pensão e do dinheiro a render juros.

A herança, Carmosina dava de barato mas – suspira – durante seis anos e um mês, setenta e três meses, duas mil duzentas e vinte e uma noites, contando a do ano bissexto, a bruaca, a desinfeliz – a sortuda, a felizarda! – dormira em cama de casal com um homem ao lado, sob as mesmas cobertas, marido válido até à última gota, pois Perpétua tivera aborto pouco antes do Major bater continência e a festa terminar.

Escreve luxúria letra a letra nos quadrados de jogo das palavras cruzadas, o pensamento voa de Perpétua para Elisa (a pobre, agoniada, esquecera as revistas); de Elisa para Antonieta.

Antonieta, essa sim, merecera a vida conjugal e a fortuna: alegre, divertida, bondosa, um encanto de criatura. Muito chegada à casa de Carmosina, colegas na escola primária; dona Milú, dedicava-lhe particular estima e a defendia quando as más-línguas vinham tosar na pele da moça, melhor dito nas carnes da rapariga. Moça falada, na boca das comadres:

- Aquela já perdeu os tampos há muito…

- Já foi chamada às ordens…

- Moça, aquela sujeitinha? Rapariga é o que ela é… dá para Deus e o mundo…

Dona Milú punha fim à conversa, dispersava o elenco;

- Se ela está dando, dá o que é dela e eu nunca soube que se deitasse com homem por dinheiro, é o corpo que pede. Que pede a ela e a todas, não é mesmo Roberta? As outras não dão, trancam com sete chaves mas só a caixa da periquita. O resto não faz mal, não é isso, Gesilda? Do sovaco ao fiofó, tudo vasculhado.

Parecia mudar de assunto:

- Que apelido mais bonito os rapazes botaram nas tuas gémeas, Francisca. Não sabe? Pois lhe informo: Mãos de Ouro e Prata, achei lindo… - Dona Milú era uma parada!

Quando Tieta, surrada e expulsa partiu no caminhão, Carmosina viera se despedir, a única. Vá dizer adeus a sua amiga, a mãe ordenara. Visíveis as marcas da véspera, o bordão atingira-lhe o rosto, roxas equimoses nas pernas, Tieta não se queixou. Pode ser para meu bem, disse. Acertara.

Nos últimos onze anos e sete meses, raro o dia em que dona Carmosina não recorda Antonieta. Desde a chegada da primeira missiva, acompanhara, carta a carta, a correspondência trocada entre Sant’Ana do Agreste e a Caixa Postal 6211 da Capital de São Paulo.

Está por dentro de tudo, sabe mais que as próprias irmãs de Tieta, muito mais. Por conhecimento directo e por dedução.

Vira o cheque engordar ao passar do tempo, com a desvalorização do cruzeiro e as lamúrias das irmãs. Corrigira – na prática redigira – as cartas de Elisa, fraca na gramática; lera as de Perpétua, as de Perpétua e as demais.

As irmãs, após a morte do Major, haviam dividido o dever e o prazer das respostas, como dividiam o conteúdo das encomendas postais, vestidos, blusas e saias, camisolas. 

Perpétua, quando lhe competia escrever, vinha com o envelope fechado, tolice! Dona Carmosina não merecia o ordenado e o privilégio do cargo se não fosse perita em descolar envelopes, ler as páginas num piscar de olhos e por tudo em ordem novamente. Só lhe custava conter o desejo de emendar os erros de português.

Além da indefectível bênção do velho Zé Esteves. Deus te abençoe e te aumente, minha filha, cada carta continha queixas da filha, louvores à querida mana e a curiosidade das irmãs e do cunhado. Antonieta respondia com bilhetes curtos – a letra graúda, o papel caro e chique com um A gótico em alto-relevo – que Elisa e dona Carmosina devoravam juntas, ali mesmo na repartição.

Dona Carmosina lera também a carta de Ricardo, a de Ricardo e outras. Aliás, fora a ingénua epístola do rapaz, pedindo à tia bênção, bola de futebol e discrição que… nada, isso não interessa a ninguém – dona Carmosina afasta a lembrança, retorna às palavras cruzadas: fruta brasileira de origem asiática, cinco letras, fácil demais.

Essa longa correspondência, agora de repente encerrada sem explicação válida, a não ser doença grave ou morte de Tieta, revestia-se de aspectos dignos de atenção e estudo, a começar pela falta de endereço completo da destinatária de São Paulo, rua, número da porta e do apartamento, se vivesse em edifício; apenas uma caixa postal, fria e anónima.

Apesar de Agreste não passar de um ovo onde todos se conheciam, tanto Perpétua quanto Elisa apressaram-se a enviar endereços completos. Perpétua Esteves Batista, Praça Desembargador Oliva, número 19; Elisa Esteves Simas Rua do Rosado, 28; inclusive endereço do pai: José Esteves Filho, Beco da Matança, s.n.

E o marido? Sem idade, sem rosto, impalpável. Pronome, comendas, vagas indústrias, os cabelos brancos na foto da revista. Dona Carmosina dedicou grande parte do seu tempo à análise e ao esclarecimento da apaixonante advinha. Reunindo dados, pistas e conjecturando.

O Major, ainda vivo, encarregara-se da resposta inicial mas não chegou ao fim sem pedir auxílio a dona Carmosina. Ela pôs ordem nas notícias, dando ênfase aos factos, quando necessário. Carta longa, relatório abarcando cerca de quinze anos de acontecimentos.

Notícias de toda a família, detalhadas. Do pai, Zé Esteves, beirando os oitenta mas sempre rijo, e de Tonha, a segunda esposa (mais moça do que Perpétua, da idade de Tieta, mas acabada na pobreza e no desleixo, simples apêndice do Velho). 

Vivia o casal da caridade de filhas e genros, nada possuindo de seu, nem bens nem rendas. Zé Esteves, trapalhão a julgar-se sabido, na ânsia de enganar os outros pusera fora terras, rebanhos de cabras, plantações de mandioca, a casa própria, tudo.

Abençoava a filha e a perdoava, pedia-lhe uma esmola. Dona Carmosina modificou a redacção, a forma e o conteúdo, em lugar de Zé Esteves perdoar, pediu perdão à filha, falou da velhice e da pobreza, insinuando ajuda; um pai pode pedir perdão mas não pode pedir esmola aos filhos.

Trecho tão comovente, na bela letra do Major, ia tocar o coração de Tieta, a própria dona Carmosina ficara com os olhos húmidos. Sempre tivera jeito para escrever, jeito e vontade. Mas, cadê coragem?

Relato do casamento de Perpétua, nome e título do marido, Major Cupertino Batista, oficial reformado da polícia Militar do Estado, seu cunhado às ordens. Deus abençoara o matrimónio, dera-lhe dois filhos, Ricardo, de cinco anos, Cupertino, dito Peto, de dois, e agora novamente fecundara o ventre de Perpétua, grávida daquele que seria o terceiro se houvesse nascido.

O Major, bom de espoleta, não negava fogo, constatara dona Carmosina, mas não tocou nesse trecho, não queria histórias com Perpétua. Encarregou-se, sim, de descrever o casamento de Elisa, a noiva mais linda já vista em Agreste, com Astério Simas, filho e herdeiro de seu Ananias, aquele da loja de fazendas da Rua da Frente, só que a loja nem parecia a mesma.

Na longínqua e decadente cidade de Sant’Ana do Agreste o comércio reduzira-se a metade naqueles quinze anos. Também a população diminuíra, composta por uma maioria de velhos, pois o clima continuava admirável, prolongando a vida dos que ali se deixavam ficar apesar da pobreza, da falta de recursos e de futuro.

O povo só não morria de fome porque o rio e o mangue forneciam com fartura peixes, guaiamus, caranguejos, pitus incomparáveis, e sobravam frutas o ano inteiro: bananas, mangas, jacas, mangabas, pinhas, abacaxis, goiabas e araçás, sapotis e melancias e o coqueiral sem fim e sem dono.


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