quarta-feira, dezembro 23, 2015

A Caixa de Pandora
A Esperança

e a Raiva






















Se a esperança for o motor de arranque de um carro a gasóleo, hoje em dia muito idênticos aos de gasolina, a raiva funciona como um propulsor de um carro de corrida... saem disparados.

Qual de vós não se sentiu já impulsionado por cada um destes dois motores de arranque?

Vivemos com esperança, ela faz-nos acreditar, motiva-nos para o dia de amanhã, leva-nos a pensar que tu vai correr bem... “pelo menos tenho essa esperança”... dizem umas pessoas, enquanto que outras, ao contrário, desabafam: ... já não acredito, perdi toda a esperança...”

Mas não se perde, porque o sol nasce todos os dias, a vida renasce e renova-se com ele e a esperança, a pouco e pouco, regressa.

Assim, a esperança acompanha-nos por toda a vida, quase que diria que faz parte dela mas a raiva, não.

Em um dia da minha vida, estávamos em 1977, passei da esperança à raiva e nessa noite, ela, a raiva, não me deixou dormir.

De manhã saltei da cama como que impulsionado por uma mola porque a raiva é assim, uma explosão de energia, quer acção, não aceita a expectativa, não nos deixa ficar na estação à espera da camioneta, metemo-nos a caminho se houver caminho a percorrer.

Em 1977, mais de meio milhão de portugueses tinham regressado de Angola e Moçambique, a maior parte sem nada ou quase nada como eu, por exemplo, meti-me no avião com a roupa que tinha no corpo e deixei para trás a minha casa, com a mesa do pequeno almoço ainda posta, o meu local de trabalho e o automóvel que entreguei a um amigo no estacionamento do aeroporto.

Não, isto não tem nada a ver com a minha raiva, apenas com o contexto: em determinados momentos da vida, certas pessoas, não devem estar em certos locais, e foi isso que aconteceu com os portugueses em Angola, Moçambique e comigo.

As independências foram um desses momentos. Caixas de Pandora que se abriram e libertaram, em primeiro lugar, as coisas boas, os festejos, os abraços, a esperança...

Mas a Caixa oferecida a Pandora pelos deuses, tinha segundas intenções ou não viesse ela dos deuses, e guardou para o fim, o que tinha reservado lá no fundo para libertar: as coisas más, como as guerras, a morte, a destruição, a dor.

Os portugueses foram apanhados neste turbilhão porque estavam lá. Foi injusto, mas é assim: são as vicissitudes da história dos povos.

Não apela à raiva e os que cederam a ela arrependeram-se, mas antes à compreensão do homem e dos seus impulsos como grupos humanos, neste caso, impedidos de trilhar o seu próprio caminho durante muitos anos.

As forças que então se libertaram são difíceis de controlar e aqueles momentos, para angolanos e moçambicanos, foram sentidos como de oportunidades, que o eram, de facto, mas que dificilmente, seriam aproveitados da forma certa.

O meu momento de raiva havia de chegar posteriormente, nas terras do meu país, na cidade conquistada por Afonso Henriques, Santarém, também ela lotada de retornados vivendo, acumulados, em casa de familiares em situações de grande tensão, porque, naturalmente, não havia habitações que chegassem para tantas famílias desembarcadas assim de rompante.

Mas amanhã, falo-vos do meu momento de raiva...

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