segunda-feira, dezembro 14, 2015

Linda, na sua nudez de mulher
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº 30





























DE ASCÂNIO TRINDADE, INTEMERATO PATRIOTA E LUTADOR, COM AS DURAS PENAS QUE EM SINA LHE COUBERAM




Só Ascânio Trindade não perde o fôlego de lutador, nem a esperança de um milagre a salvar Agreste – ama a terra onde nasceu e à qual a doença do pai o fizera regressar abandonado o curso de Direito.

Já não tem obrigação a cumprir em Agreste, pois seu Leovigildo finalmente morrera após infindáveis cinco anos, preso à cama sem movimentos, apenas um olho aberto a fitar o vazio.

Ascânio fora enfermeiro, ama-seca, pai e mãe, dando banho naquele corpo inerte, limpando-o, pondo-lhe o comer na boca, duras tarefas. 


Rafa, a escura mãe de leite, mal podia ajudar, por mais que quisesse, velha e reumática, sem forças. Ascânio tomava nos braços o corpo do pai, levando-o para deitá-lo ao sol sob a goiabeira, no quintal, fazendo-lhe muda companhia horas e horas.

Sempre tranquilo, sem uma queixa, nem dos estudos interrompidos, nem da longa provação. O olhar do pai, um único olho, a acompanhá-lo agradecido, basta ao filho. Esse já ganhou o reino dos céus, diziam as beatas.

Após o enterro de seu Leovigildo, havia dois anos, Ascânio, se quisesse, poderia ter-se demitido do cargo de Secretário da Prefeitura onde o pusera o padrinho, coronel Artur de Tapitanga, quando o viu sozinho com o pai paralítico e sem tostão.


Demitir-se para quê? Para voltar à cidade da Baía, recomeçar a faculdade? Maior do que a falta de recursos, era a falta de vontade. Na capital, Astrud, casada, ria a inesquecível, cristalina gargalhada – aqui, em meu desterro, carregando a cruz do meu calvário, ouço teu riso de cristal e reencontro forças; nos dias mais penosos a recordação dos teus olhos verdes me sustenta o ânimo.

Dona Carmosina derrama lágrimas lendo as violadas cartas, quanto amor!

Noutra coisa não pensou Ascânio no primeiro ano senão no dia do retorno. Mas quando, abrupta, Astrud lhe comunicou o próximo casamento, sem sequer ter desfeito o noivado, ele jurou não pôr mais os pés na cidade onde habitava a traição.


Sobretudo depois que Máximo Lima, seu colega de faculdade, advogado, a prosperar na Justiça do Trabalho, lhe informara haver a inocente, a imaculada Astrud, casado de bucho inchado, não fosse solto o vestido de noiva e se enxergaria o volume da barriga de quase quatro meses. Já de menino e escrevendo cartas de amor para Ascânio, prosseguindo no casto idílio, cândida menina, puta sem rival! Isso lhe doía mais que tudo; acreditara na pureza, no firme sentimento, deixara-se iludir como uma criança tola, ingénuo paspalhão.

Ademais, habituara-se à vida de Agreste, no que ela tinha de melhor, o ar, a água, a paisagem, a convivência dos amigos. Só não aceitara a passividade do atraso, da pobreza, o marasmo. A cabeça repleta de planos, não se deixa abater.



Terra tão mísera e largada, Agreste não interessa nem mesmo aos políticos, raça aliás em extinção. Entregue a Prefeitura ao doutor Mauritónio Dantas, cirurgião-dentista de forças reduzidas pelos desgostos e pela esclerose, trancado em casa a bem da moralidade pública, quem realmente manda e desmanda é Ascânio.

Há um consenso geral: quando o doutor bater as botas, colocarão Ascânio no cargo vago, se possível, Prefeito para a vida inteira.

A verdade é que, praticamente sem receita alem da quota federal do imposto de renda, da escassa ajuda estadual, Ascânio mantém a cidade limpa, calçou com pedras do rio, ruas e becos, inaugurou duas escolas municipais, uma na Rocinha, outra em Coqueiro, e busca obter, à custa de ofícios, petições às autoridades, cartas aos jornais e estações de rádio, que se estendam a Agreste os fios da Hidroeléctrica. 


Ascânio não desanima, porém. Prossegue em sua luta. Acredita que um dia, fatalmente, a fama do clima, a qualidade da água, a beleza da paisagem trarão às artérias e praias de Agreste turistas ávidos de paz e natureza.

Ao ouvi-lo falar há quem sorria do ardente entusiasmo, Agreste não tem jeito; mas há quem se empolgue e por um momento sonhe com ele, veja realidade nessa fantasia; como sempre, as opiniões se dividem.


Somam-se unânimes, sem divergência ao julgar o próprio Ascânio. Não há, em todo o município, cidadão mais estimado, mais bem visto. As moças casadoiras não tiram os olhos dele. Ascânio completou vinte e oito anos, o que espera para escolher noiva? Quando Prefeito não poderá continuar freguês da casa de Zuleika.

Por mais de uma vez, dona Carmosina lhe colocou o problema na Agência dos Correios. Tanta moça bonita e prendada em Agreste e todas desejosas. Ele sorri apenas, sorriso triste. 


Dona Carmosina não insiste: leu a correspondência toda, linha por linha, repete de memória trechos da derradeira missiva, resposta à comunicação do próximo casamento – quem te escreve, Dalila, é um morto, frígido coração que, da sepultura onde o enterraste, apunhalado, vem te desejar felicidade; que o remorso não turve tua vida e que Deus me conceda a graça de esquecer-te, arrancar do peito tua imagem… 

Um poeta, Ascânio Trindade, se escrevesse versos, nada ficaria a dever a Barbosinha. Pelo visto, não esqueceu, não pensa em noiva.

Sorri apenas um sorriso triste. Outra? Jamais. Nem que um dia desembarque da marinete de Jairo a mais formosa das donzelas, a mais pura e sedutora. Coração morto para o amor, minha querida dona Carmosina.

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