A mini -saia de Leonora.... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 51
Não só meninos, homens feitos também, bando de ordinários.
É a mini-saia de
Leonora, figurino inédito em Agreste.
As mãos nas cadeiras, à
maneira das feirantes, Tieta fita o animado rebanho. O olhar da ricaça de são
Paulo – ou o olhar da pastora de cabras? – entre severo e pícaro, dissolve o cortejo,
restam apenas alguns moleques, admiradores mais renitentes.
Ascânio respira,
Osnar aprova. Para dizer a verdade, o que mais incomoda Ascânio é a presença de
Osnar, o olhar de verruma, a expressão de beatitude.
Duas cadeiras de barbeiro ao ar livre, ocupadas ambas, e o trovador Claudionor
das Virgens a declamar os versos de folheto de cordel:
Três vezes já casei
Com branca, preta, mulata
No padre, no juiz, na mata
Pela quarta casarei
Por ordem do delegado
Para deixar de ser ousado,
Cala-se a voz do trovador das Virgens à passagem da comitiva. A mini-saia o
inspira, improvisa:
Quem me dera casar com Aurora
Que passa de cu de fora.
- É isso que você come em casa no café da manhã – Tieta aponta as raízes de
aipim, de inhame, as batatas-doces. A verde fruta-pão.
Elisa, inqui eta, a constatar novo crescimento do número de basbaques convida:
- Vamos indo para casa? Estou morrendo de calor.
Verdade, aliás. Não trocara de roupa, está com vestido negro posto para a
missa, fechado no pescoço, o contrário de Leonora. O que mais aflige Elisa?
Os moleques, os assobios, o deboche do trovador, a falta de respeito, o
achincalhe ou o sucesso da paulista?
- Ascânio prometeu me levar para ver os passarinhos… - doce pipilar de Leonora.
A procissão engrossa, enquanto rumam para a feira de passarinhos – os pássaros
sofrê, os pássaros pintores, os pássaros negros, os cardeais, os azulões, os
canários-da-terra, papagaios e periqui tos
e uma araponga a malhar o ferro com o seu grito de bigorna. Leonora irradia
felicidade, o acompanhamento toma aspecto de comício, com risos, dichotes,
pregões.
- Acho melhor a gente ir andando – insiste Elisa.
- Só um minuto mais. Olhe esse, que amor!
- É um pássaro sofrê, imita todos os passarinhos. Ouça – Ascânio assobia, a ave
responde.
Da turba em gozação, outros assobios, acanalhados. Fi-ti-ó-fó, vai também o
passarinho. Rindo, a pitar o cigarro de palha, soletre, Osnar avança em
direcção aos pândegos, agarra um molecote pela orelha, os demais recuam em
correria, explodem em apupos, a troça se estende pela feira.
Ali perto, em cima do caixote de querosene, a cuia ao lado, o profeta
Possidónio proclama o iminente fim do mundo, anunciado pelo aparecimento de
objectos luminosos em
Mangue Seco , ígneas naves de gás conduzindo arcanjos enviados
por Deus para escolher e marcar os locais onde se erguerão as fogueiras de
enxofre sobrenatural, fabricado nas caldeiras do inferno para consumir o mundo
entregue à devassidão, à orgia, à luxúria.
De costas para a cara do ascético beato, curva-se Leonora, oferecendo o dedo a
um papagaio manso e falador – diz bom-dia, pede a bênção, fecha um olho,
cómico.
O beato Possidónio, por mais erudito em matéria de iniqui dade humana, de depravação, de impudicícias,
jamais vira, com os seus olhos queimados pelo sol do sertão, tal desregramento,
tamanha imoralidade. O excitante traseiro de Leonora, praticamente nu,
obra-prima de Satanás, aplaudido pela súcia de condenados, coloca-se diante das
místicas ventas do profeta, provocação monstruosa!
- Arreda! Sai de minha frente, volta para as profundas do inferno, mulher
imunda, pecadora, rameira!
Indignado, Ascânio marcha para o beato Possidónio:
- Cala a boca, maluco!
Mas Tieta o detém, segura-lhe o braço, diverte-se às pamparras.
- Deixa o velho Ascânio. É a mini-saia de Leonora.
- Hein! A mini-saia… - Leonora não sabe se há-de rir ou chorar. – Não me diga,
nunca pensei… - dirige-se a Ascânio. – Nunca me passou pela cabeça. Desculpe.
- Quem tem de pedir desculpas sou eu, pelo atraso do povo.
Um dia vai mudar –
No fundo, nem ele próprio tem certeza. Mudança tão incerta quanto o fim do
mundo do sermão de Possidónio.
Deixam para outro passeio boa parte da feira: as carnes-de-sol, os guaianos, os
potes e moringas, as figuras de barro, o caldo de cana extraído em primitivas
prensas de madeira, tão sujo e tão delicioso.
O beato continua a vociferar
enquanto eles partem. Tieta a rir do acontecido, e logo a pedir a Osnar que lhe
conte a célebre história da polaca, sobre a qual Carmosina lhe falara. Alguns
moleques ainda os acompanham pela rua.
A notícia os precedeu, chegou ao bar e ao adro da igreja, um alvoroço para
vê-los passar. Leonora anda o mais depressa possível, nunca pensara desencadear
o fim do mundo.
- Está próximo, sim, tive aviso e confirmação, posso assegurar – esclarece
Barbozinha a par dos segredos dos deuses e das loucuras dos homens – Vai ser
uma explosão atómica colossal. Todas as bombas atómicas existentes, as
americanas, às russas, as francesas, as inglesas, as chinesas – os chineses
estão fabricando na surdina, tenho informações recentes – vão explodir ao mesmo
tempo, às três horas da tarde de um primeiro dia de Janeiro. Não digo o ano
para não alarmar ninguém.
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