Com as paulistas a Feira Semanal de Agreste é um festival... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 50
DO PASSEIO NA FEIRA COM O ANÚNCIO DO PRÓXIMO FIM DO MUNDO,
CAPÍTULO DR PROFECIAS
A feira de Agreste é uma festa semanal. No primeiro sábado após a chegada das
paulistas, transformou-se num festival, em regozijo público, por pouco termina
em fuzuê.
Após a missa pela alma do Comendador, Tieta e Leonora passam em casa para
trocar de roupa: ninguém aguenta fazer feira com vestidos negros, pesados, elas
nem sabem por que milagre os puseram na mala.
A comitiva inclui Elisa,
Barbozinha, Ascânio Trindade, Osnar, o Velho Zé Esteves, paletó no braço,
bastão e esposa, faz-lhes companhia até à Praça do Mercado (Praça Coronel
Francisco Trindade), de onde a feira se estende pelas ruas vizinhas.
Ali se
despede, à tarde irá buscar Tieta para correrem duas casas à venda, entre as
muitas oferecidas, as únicas convenientes.
Perpétua agradece o convite, não aceita. Vai à feira cedo, acompanhada por
Peto, a carregar as cestas. Dia de feira, dia dos mendigos: Perpétua passa o
resto das manhãs de sábado em casa, distribuindo esmolas, mercadejando com Deus
um lugar no paraíso em troca de caridade.
Em cada uma das casas das ruas
principais, durante a semana, as famílias guardam as sobras de pão, as bolachas
envelhecidas, restos de comida de véspera, frutas amassadas, algumas moedas,
para a multidão de esmoleres a invadir a cidade, vindos quem sabe de onde.
Seu
Agostinho da padaria fornece por preço de ocasião sacos cheios de pães
dormidos, duros como pedras, de bolachões moles, de bolos mofados, filantropia
a preço módico. Quem dá aos pobres empresta a Deus. Com juros altos, bom
emprego de capital.
Alguns pedintes são fixos em Agreste, passam diariamente pela manhã ou ao cair
da tarde, possuem freguesia certa. O cego Cristóvão senta-se na escadaria da
igreja na hora da missa chova ou faça sol e ali se demora de mão estendida a
recitar sua litania.
O beato Possidónio, somente aos sábados e na feira. Vem de
Rocinha, sob o queixo a barba rala de profeta caboclo, sem dentes e boca de
praga; traz um caixote de querosene, vazio e uma cuia de queijo.
Prega nas
proximidades do local onde ficam os vendedores de pássaros, trepado no caixote,
a cuia ao lado para as esmolas – só aceita dinheiro.
Estende-se em nebulosa lengalenga
sobre os pecados dos homens; anuncia desgraças aos montes, profeta de um Deus
terrível, vingativo, cruel. Cita os evangelhos, condena protestantes e maçons,
proclama a santidade do padre Cícero Romão. Basta enxergar uma mulher mais
pintada, ergue-se a insultá-la, destinando-as às chamas eternas.
A voz esganiçada, Perpétua queixa-se dos mendigos a Antonieta, fala deles como
de inimigos: cada vez mais ousados e exigentes, o exercício da caridade
transforma-se em sacrifício:
- Não aceitam nem mangas nem cajus, dizem que ninguém compra, tem demais, manga
não é esmola que se dê, já se viu? Mesmo banana torcem a cara. Não tem um
trocado? Querem dinheiro. Outro dia um me chamou de canguinha.
Na feira, montes de frutas se sucedem, muitas delas Leonora não conhece; bate
palmas encantada. Que goiabinas pequenas! Não são goiabas, são araçás,
araçá-mirim, araçá cagão. Com elas se faz o doce que comemos em casa de Elisa.
As goiabas estão aqui , vermelhas e
brancas: vermelhas e brancas. Comparadas às goiabas dos japoneses de São Paulo,
são pequenas, mas sinta o gosto, meça a diferença. Melhor ainda se estiver
bichada.
Cajus, não há fruta igual para a saúde. A não ser o jenipapo, que cura
até doença do peito. Você precisa comer jenipapada para ficar forte. E o gosto?
Para mim não há nada mais gostoso.
Vamos comprar agora mesmo; o jenipapo quanto
mais encarqui lhado melhor. Tieta
escolhe, conhecedora. Mangabas, cajás, cajaranas, umbus, pitangas.
Os mendigos
têm razão ao recusarem esmolas de manga, sobram pela feira, as cores de
aquarela, as variedades numerosas: rosa, espada, Carlota, coração-de-boi,
coração magoado, itiúba, tantas.
As jacas, duras e moles, descomunais, das
talhadas expostas sobe um odor de mel. Que fruta é essa que parece pinha?
Condessa. E essa maior? Jaca-de-pobre, o sorvete é sublime. Leonora quer ver de
perto, quer tocá-la. Curva-se, exibe a calçola diminuta sob a mini-saia. Júbilo
geral.
Quando a viu de mini-saia, Ascânio pensou desaconselhar o traje na visita à
feira mas temeu passar por tabaréu, por retrógrado, calou-se. Agora é ir em
frente, buscando não ver e não escutar. Difícil, pois a animação aumenta.
Nunca a feira de Agreste conheceu pagodeira igual.
Barbozinha, entretido a
explicar a Tieta problemas de encarnação e reencarnação, da vida no astral,
assuntos em que é professor emérito, não se dá conta do sucesso, mas Ascânio
Trindade aflige-se com tamanho atraso, indeciso sobre a maneira de agir.
Aflito
apenas? Ou sofre também ao ver expostas ao público aquelas formosuras que
desejaria exclusivas, reservadas a quem conduza ao altar a inocente Leonora
Cantarelli?
Inocente de todo o mal não imagina o mal, não imaginaria o
escândalo que provocaria indo à feira vestindo de mini-saia, moda banal no sul
do país e no estrangeiro.
Nas páginas coloridas das revistas, Ascânio admirou
mini-saias bem mais ousadas, a de Leonora até que lhe encobre a bunda se ela se
mantém a prumo.
- É melhor que ela se curve menos – sussurra Osnar a Ascânio.
Nem Osnar, um cínico, se anima a aconselhar a cândida vítima da ignorância
local, quanto mais Ascânio. Prossegue o passeio pela feira arrancando
exclamações de Leonora e do bando de moleques a seguir a comitiva. De quando em
vez um assobio, uma interjeição, uma frase em língua de sotaque.
- Espia, Manu, o andor da procissão está passando…
Sacos de alva, olorosa farinha de mandioca, torradas em casas-de-farinha da
região: a puba, a tapioca, os beijus.
Prove, Leonora. Com café são ópt imos, vamos comprar.
Esses molhados levam leite de
coco, não há quem resista, vou engordar como uma porca. Mas que é isso, meu
Deus, essa meninada a segui-los? Antonieta contempla o ajuntamento.
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