terça-feira, março 15, 2016

As meninas são as vendedoras, bonitas e elegantes.
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 102





















DA CONVERSA NO CAMINHO DO RIO


Tieta passeia os olhos pelo céu, convertera-se em minguante a lua cheia que iluminara o areal de Mangue Seco mas faíscam estrelas aos milhares, inumeráveis ela não se cansa de contemplá-las, de admirar esse firmamento como já não existe nas cidades do sul. Na cidade de São Paulo, onde vive a labuta, encoberto pela fumaça da poluição, é negrume o firmamento.

- Estou fartando a vista no céu de Agreste, Carmô. Lá não tem nada disso. Lá o céu acabou.

Para conversarem a sós, o único jeito foi fugir da casa repleta enquanto Barbozinha, invencível, atravessava o pantanal de Mato Grosso à frente de um regimento da Coluna Prestes, após ter sido um dos Dezoito do Forte, o único a escapar miraculosamente: um a mais, um a menos não aumenta o número, continuarão dezoito, essa a grandeza das legendas. Aminthas advertiu o bardo heróico:

- Cuidado com a língua, meu poeta. Que você seja o décimo nono ou o vigésimo-terceiro dos Dezoito, não vejo mal além dos arranhões na verdade histórica. Mas, ao se meter na Coluna Prestes, passa a correr perigo de cadeia. Por muito menos, andaram encanando gente em Esplanada.

Quando dona Carmosina chegou para a conversa reservada, encontrou a sala de visitas cheia de amigos, a varanda ocupada por Leonora e Ascânio, sobrando apenas o recurso da fuga. Aproveitando a deixa de dona Carmosina: aqui a gente não vai poder conversar, tenho muita coisa a lhe falar mas não na vista do povaréu, como se há-de fazer?

Tieta propôs a retirada. Haviam escapado pelos fundos da casa, sem que ninguém se desse conta. Agora, andam no caminho do rio:

- Só que lá, Carmô, se ganha dinheiro. Quem quiser trabalhar, tiver disposição, pode fazer seu pé-de-meia. Aqui a pobreza é demais, eu já me tinha esquecido do tamanho.

Tieta toma o braço de dona Carmosina, as duas amigas marcham em direcção ao ancoradouro, ouve-se na sombra o rumorejar ainda distante da correnteza do rio. A brisa da noite as envolve, chegada do mar, das bandas de Mangue Seco onde Ricardo espera, certamente postado no alto das dunas, buscando, enxergar sinal de luz na distância, crucificado em medo e desejo, em pecado e saudade, dilacerado.

- Aqui a pobreza é por demais, a começar por minha gente. Vivem tão apertados…

- Perpétua até que não… - rectifica dona Carmosina – Todo o mês coloca dinheiro na Caixa, em Aracajú, não é nenhuma tola.

- Não pense que não sei, Carmô, não nasci ontem, conheço as cabras do meu rebanho e a que mais conheço é Perpétua. Sei que Ricardo estuda de graça, o padre arranjou com Dom José, sei que Peto está no grupo escolar, não paga nada, sei mais que você e ela podem imaginar.

Mas nem por isso nego minha ajuda. Afinal o que ela tem é tão pouco, só é alguma coisa em comparação com a pobreza dos outros, mas para o futuro dos meninos não é nada. Os meninos são uns amores. Ricardo é estudioso, compenetrado, sério, vestido de batina fica tão engraçado, parece um anjo torto, - Fita a velha amiga – Mandei abrir uma caderneta de poupança em São Paulo em nome dele, como aliás você sabe…

- Eu sei? Que história é essa? Não sei de nada, você não me falou, como havia de saber? – dona Carmosina reage nervosa, quase insultada com a indirecta.

Tieta enche o caminho com uma risada alegre, divertida, aperta o braço da companheira afectuosamente:

- Sabe porque leu a carta que eu escrevi à gerente do meu negócio mandando ela ir ao banco, abrir a caderneta, fazer o depósito. Não me diga que não leu, Carmô, porque eu não acredito. Se eu fosse a você, também lia.

A princípio confusa, sem resposta, dona Carmosina termina contagiada pelo riso da amiga, reclama:

- Também nunca vi cartas mais discretas, mais reservadas do que as suas. Não contam nada, nem as que você escrevia para a família nem as que escreve para São Paulo. Nunca vi tanta avareza de palavras: faça isso, faça quilo, como vão as coisas, a clientela, firme? E as meninas como se comportam? Até agora não descobri que espécie de negócio você tem, além das fábricas. Dessas todos sabem.

- Não há segredo, Carmô, apenas sou ruim de escrita, quanto menos escrevo menos erro. Além disso, não gosto que meus assuntos andem na boca do povo, ninguém precisa de saber dos ganhos da gente; eu acredito em mau-olhado.

Mas a você, não tenho nada que esconder. O que eu possuo em São Paulo é uma butique de luxo, com preços muito caros, para gente da alta sociedade, a clientela é de primeira ordem, rende um bom dinheiro. As meninas são as vendedoras, bonitas, elegantes, ganham bem.


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